“Se alguém me
quer seguir, renuncie a si mesmo...” (Mc 8,34)
Todos nós somos habitados por um conjunto de “eus”,
alguns conscientes, outros inconscientes. São os “pequenos egos” ocultos que
habitam nosso interior. São elementos de nossa própria sombra, aos quais
deveremos prestar atenção se quisermos avançar rumo a uma plenitude humana e
espiritual.
A sombra é composta por um conjunto de pequenos “egos”
que fomos alimentando no decorrer de nossa vida. Na sombra pode haver um ego
vaidoso, orgulhoso, sozinho, assustado, ressentido, angustiado, irado,
invejoso, triste, sensual, avarento, vítima, sádico... Trata-se de descobrir,
pouco a pouco, esses pequenos “egos” reprimidos e inflados, nomeá-los e
dialogar com eles. Neles se esconde a pessoa que teve de ocultar-se, negar-se
ou até rejeitar-se para sobreviver diante dos outros.
Para sair dessa armadilha é necessário situar-nos em
nosso “espaço interior”, aí onde nos identificamos com nosso “eu verdadeiro”,
para perceber as coisas de forma adequada. Uma experiência espiritual profunda
consiste em estar cada vez mais lúcidos com relação a ele; identificando-nos
prazerosamente com nosso Eu verdadeiro vamos “desvelando” e conhecendo mais
nossos “pequenos egos” ocultos.
Só podemos dialogar proveitosamente com nossos “egos”
a partir de nosso “eu” verdadeiro (lugar da beatitude original). Desse diálogo
brotam sentimentos de paz, abertura, espontaneidade, vitalidade, amor...
Quando experimentamos algum mal-estar existencial
persistente, devemos desmascarar nosso pequeno “eu” sofredor (ressentido,
desprezado, criticado, culpado...). A partir do melhor em nós, acolhemos e
compreendemos esse mal-estar, ao mesmo tempo que a ele expressamos nossa
compreensão e acolhida; nós nos humanizamos à medida que temos a coragem de descer
ao encontro dos nossos “egos” e não permitimos que eles determinem nossa vida.
Cada vez que nos reduzimos ao “ego”, bloqueamos o fluir da vida, e apenas
sobrevivemos na superficialidade de nós mesmos.
É aqui que se situa a afirmação de Jesus que fecha,
como chave de ouro, toda a cena do evangelho de hoje: “Quem quiser vir comigo,
renuncie a si mesmo, tome sua cruz e siga-me”. É um ponto chave do ensinamento
de Jesus, ou seja, o convite a entrar na lógica do dom, do descentramento do
eu, da entrega gratuita, da superação da mera reciprocidade.
É a lógica aberta pelo Reinado de Deus, que alarga o
horizonte da vida humana, enriquece as possibilidades de atuação e aumenta a
criatividade no serviço. A lógica do dom implica deixar-se conduzir por Deus,
conhecido através de Jesus, que é entrega de vida, misericórdia, perdão, amor
infinito.
Uma consideração superficial destas palavras de Jesus
deu margem a uma apresentação do cristianismo como a religião que enfatizava a
dor, a renúncia e a negação da própria vida e da própria identidade. Mas Jesus
não buscava a dor e nem negava a vida. Suas palavras não são uma exaltação do
sofrimento, mas expressam uma grande sabedoria: elas buscam “despertar” a
pessoa para sua verdadeira identidade, para que assim ela possa assumir uma
atitude acertada diante da vida.
O horizonte de toda pessoa é precisamente a vida e a
plenitude. Isso é o que todos, sabendo ou não, buscamos. E buscamos isso em
tudo o que fazemos e em tudo o que deixamos de fazer. Como acertar?
Jesus oferece uma resposta carregada de sabedoria, na
linha daquela que foi dada por todos os mestres e mestras espirituais: para
caminhar na direção da vida, é necessário “desapegar-se” do ego.
“Renunciar a si mesmo” ou “negar-se a si mesmo”
é não se reduzir ao eu superficial ou ego. Só quando nos desapegamos do ego,
tomamos consciência de nossa identidade mais profunda, a vida que somos. Essa é
a Vida de que fala o Evangelho, a mesma Vida que Jesus vivia, com a qual Ele
estava identificado (“Eu sou a Vida”) e que buscava despertar em nós.
“Renunciar a si
mesmo”: não se trata de negar o que somos, mas o que pretendemos ser e não
somos.
No mais profundo de cada um de nós habita uma
pretensão básica de querer “ser deus” – “sereis como deuses”. É o pecado de
raiz já dos nossos primeiros pais. É a tentação de querer ser outro, de não
aceitar ser dependente, de não se aceitar como criatura, como humano (frágil e
limitado)...
“Renunciar a si mesmo” é não deixar que o impulso para
a vaidade, a soberba, o poder... predomine; não deixar que o centro seja o
“eu”, mas Deus. Isso implica em “descer”, humildemente, ao próprio húmus.
Se não venço essa pretensão de “bastar-me a mim
mesmo”, não posso seguir Jesus Cristo.
O seguimento de Jesus implica, pois, um
descentramento, um esvaziamento do “nosso próprio amor, querer e interesse” (S.
Inácio). Para poder viver o Evangelho de uma maneira inspirada, deveríamos
deixar ressoar profundamente em nós essa expressão tão forte de Jesus:
“negar-se a si mesmo” para poder viver com mais plenitude e
transparência.
“A negação de si” enquanto negação do que nega a vida.
“Negar-se a si mesmo” é deixar de se identificar com a tirania das
mensagens de nossos pequenos “egos”, que se refletem em nossa própria linguagem
e auto-imagem. “Negar-se a si mesmo” é um conselho sábio: significa negar o que
na realidade “não é”, despertar-se da ilusão e do engano, deixar de girar em
torno de um suposto “eu” que não existe, para viver a comunhão com todos e com
tudo e agir assim de um modo mais coerente.
Não somos os pequenos “egos” que acreditamos ser.
Precisamos despertar dessa ilusão e entrar em contato com nosso verdadeiro Eu,
nosso Ser e, a partir dele, olhar a vida, olhar nossa atividade e olhar os
outros, a fim de viver em sintonia com quem somos em profundidade. É esse o
modo de “ganhar a vida”.
Precisamos desvelar (tirar o véu) de nossos “pequenos
eus”, detetar e reconhecer seus dinamismos sombrios e atrofiadores, para
podermos caminhar, com mais naturalidade e leveza, para além de nós mesmos. Do
contrário, eles travarão nossa vida de uma maneira tirânica.
É saudável reconhecer esses “eus” e dialogar com
eles, pois de outra forma eles se fixarão em nós como rigidez ou nos
transformarão em fanáticos. Rigidez e fanatismo, dureza e intolerância, legalismo
e moralismo... indicam a existência de “eus” inflados que atrofiam nossa
existência.
Por isso “renunciar-se a si mesmo” não é mutilar-se,
nem buscar sacrifícios, nem anular-se..., mas é descer até “o dinamismo de
vida” (a força germinadora) que pulsa no próprio coração, ansioso de plenitude,
de vida e de amor.
A afirmação de Jesus, portanto, nos faz descobrir que
por detrás do “renunciar-se a si mesmo” pulsa o desejo de desprender-se do “ego
desumano” para poder expandir a vida em direção a uma ousada
criatividade.
Texto
bíblico: Mc. 8,27-35
Na oração: Orar é aproximar-me da “verdade que me faz
livre”; livre para ser “eu mesmo”, chegar a ser aquilo a que sou chamado
a ser.
Por isso a oração cristã é também descoberta do “eu”,
da minha própria realidade pessoal, do mistério que a habita. É nessa
experiência divina que “descubro-me a mim mesmo”. Começo, então a descobrir o
meu ser (único, original, sagrado...) quando “mergulho” no misterioso
relacionamento com Deus e quando permito que o “mistério experimentado” se
torne fonte de minha identidade.
Mais ainda, saberei melhor QUEM sou eu, esquecendo-me
de mim mesmo, aceitando perder-me, deixando que o Amor me liberte de meu pequeno
ego.
Pe. Adroaldo
Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
"Retirado do site -CATEQUESE Hoje-http://www.catequesehoje.org.br"- Um site com brasileiro com muita qualidade!
Nenhum comentário:
Postar um comentário