sábado, 24 de março de 2018

GLOBO NEWS - ARQUIVO "N" - MADRE TERESA DE CALCUTA - HISTORIA DE VIDA - 2 de 3


O Vídeo do Papa: Formação para o discernimento espiritual



"Para que toda a Igreja reconheça a urgência da formação para o discernimento espiritual, a nível pessoal e comunitário."

Intenção de oração do Papa Francisco para o mês de março 2018: A Igreja hoje precisa crescer na capacidade de discernimento espiritual. Há muitas maneiras de dedicar bem a vida, colocando-a a serviço dos ideais humanos e cristãos. Fomos criados por Deus por amor e para amar. Precisamos "ler a partir de dentro" o que o Senhor nos pede, para viver no amor e ser continuadores desta sua missão de amor. O tempo em que vivemos exige de nós desenvolver uma profunda capacidade de discernimento... Discernir, entre todas as vozes, qual é a voz do Senhor, qual é a voz d'Ele, que nos conduz à Ressurreição, à Vida, e a voz que nos livra de cair na "cultura da morte".

"Retirado do site dos Missionários Combonianos - https://www.combonianos.pt em 24.03.2018"

terça-feira, 6 de março de 2018

Olhos fixos em Jesus


“Sumário
Olhos fixos em Jesus

1 Ser crente hoje (Juan Martín Velasco)
2 Paisagens para a fé (Dolores Aleixandre Parra
3 Com os olhos fixos em Jesus (José Antonio Pagola)
Apresentação

Oh, cristalina fonte,
se nesses teus semblantes prateados
formasses de repente
os olhos desejados
que tenho nas entranhas desenhados!
São João da Cruz. Cântico espiritual

A geografia do corpo humano, relacionada com a fé, mostra-se rica em lugares. Pés que andam ou desandam veredas, mãos que agarram ou soltam, ouvidos que escutam ou estão fechados... Mas, provavelmente, não haja outro lugar que tenha um papel tão peculiar como os olhos. Antes do contato físico – e contando também que possam existir olhos cegos –, eles são vigias encarregados de vislumbrar, quando ainda estão longe, tanto as presenças desejadas como as indesejáveis. Por isso os olhos podem certamente ser considerados como uma autêntica porta da fé, como acontece com o discípulo amado quando descobre a presença do Senhor ressuscitado à margem do Lago da Galileia (Jo 21).
Porta fidei, a “porta da fé”, é precisamente o título que Bento XVI deu ao motu proprio com o qual ele convocava este “Ano da Fé”. Um ano que vai de 11 de outubro de 2012 a 24 de novembro de 2013. A data de início não é casual, pois nela se celebra o cinquentenário da abertura do Concílio Vaticano II, e os vinte anos da publicação do Catecismo da Igreja Católica.
Para a comemoração destas efemérides, três dos mais importantes e significativos autores no campo do pensamento religioso e teológico espanhol – os três, em grande parte, filhos desse Concílio cuja lembrança celebramos – brindam-nos com suas reflexões a propósito da fé. Com os olhos fixos em Jesus, cada qual com seu estilo e seu gênio particular, vai extraindo aqueles aspectos relativos à fé cristã que podem ajudar os leitores a personalizá-la e fazê-la cada vez mais própria. Porque é disso que se trata. As diferentes pistas para a reflexão pessoal ou em grupo que acompanham os textos oferecem também diferentes modos de leitura do livro e a possibilidade de poder trabalhar com ele.
Os olhos permitem o jogo dos olhares. Um jogo no qual convém ter sempre presente o dito do poeta: “O olho que vês não é olho porque tu o vês, é olho porque te vê” (Antonio Machado). Oxalá este livro sirva para que aqueles que o leiam – seja qual for sua situação pessoal ou eclesial – se sintam benevolamente contemplados pelo Senhor e possam chegar a pronunciar com verdade aquelas palavras de São Paulo: “Sei em quem pus minha fé” (2Tm 1,12).
PPC
1 Ser crente hoje  (Juan  Martín Velasco)
(…)
1.1  A situação religiosa e nossa própria situação como crentes
Crise religiosa e crise de Deus
(…)
Este risco já está se tornando realidade porque a crise religiosa converteu-se em crise de Deus e da fé. Indícios dela são a extensão da descrença por todos os setores da sociedade e a radicalização de suas manifestações que desembocou numa indiferença generalizada, e no fato de que “da fé em Deus já não partem estímulos que determinem a vida e a história” (W. Kasper). O último avatar desta crise de Deus é sua extensão a muitos crentes, e sua presença no interior da Igreja.
O próprio Bento XVI referiu-se a ela ao denunciar a anemia da fé dos crentes como o aspeto mais grave da atual crise religiosa da Europa, e advertir que um agnóstico em busca pode estar mais próximo de Deus do que um cristão rotineiro, e que é cristão meramente por tradição ou por herança.
(…)
Estamos de fato afetados pela crise de Deus?
(…) Pode até parecer uma ofensa atribuir uma possível crise da fé em Deus a pessoas que se consideram e se confessam crentes; que cumprem bem ou mal com suas obrigações de cristãos e que até consagraram sua vida ao serviço da Igreja. Mas a verdade é que a falta de irradiação da fé que se mostra nas comunidades cristãs, sua incapacidade de comunicar e transmitir a fé às gerações jovens e a tibieza da vida cristã de tantas comunidades, e daqueles que as presidem, faz temer que alguns ou muitos dos que crêem e se chamam crentes sofram, em maior ou menor grau, essa crise e que possam continuar a chamar-se crentes só a partir de uma maneira distorcida de entender a fé que está bem longe de refletir a forma de crer proposta pelo Evangelho.
(…)É possível que, depois da renovação da teologia da fé posterior ao Vaticano II, tenhamos ouvido e aprendido que a fé é encontro pessoal, confiança incondicional em Deus e o creiamos, mas sem ter dado passos para realizar o que estas fórmulas significam. Nossa situação poderia ser semelhante à de Moisés que vê ao longe a terra prometida, mas que alguma coisa – que no nosso caso não procede precisamente de Deus – o impede de entrar nela. O Livro dos Atos dos Apóstolos se refere aos primeiros cristãos como “os crentes” (At 2,44; 5,14; 1Ts 1,7). Será que nós cristãos, os católicos de hoje, podemos identificar-nos com esse belo nome?
(…)Sem dar-nos conta de que entre este saber sobre Deus e sobre o Cristo, e crer nele há a mesma distância que entre saber sobre o amor porque se leu livros que o explicam e conhecê-lo porque se teve a sorte de amar e ser amado.
(…)É provável que existam grupos cristãos que não se identifiquem com essa situação porque não faltam no catolicismo atual grupos confessantes, com práticas exigentes, com gestos de manifestação pública de sua condição de católicos, com atividades destinadas a atrair outros à Igreja, mas com atitudes que poderiam levar a vê-los refletidos na figura do fariseu que orava no templo, satisfeito consigo mesmo e dando graças a Deus por não ser como os demais, mas que não saiu do templo justificado.
(…)
1.2  O caminho para a fé “O que devemos fazer, irmãos?” (At 2,37)
(…)
Condições para que a palavra “Deus” recupere todo o seu esplendor
O que deve acontecer numa pessoa para que a palavra “Deus” recupere essa densidade de significado, essa qualidade única que ela tem nos lábios dos verdadeiros crentes, dos convertidos, e que faz com que a realidade à qual se refere transtorne a vida de quem a diz com toda verdade e não, como tantas vezes acontece, “tomando-a em vão”? O que primeiro deve acontecer é que essa realidade se faça presente à pessoa das mil formas em que se pode dar sua presença invisível, mas inconfundível: a partir do interior da consciência, num acontecimento de sua vida, no rosto do outro, na Escritura, em Jesus Cristo reconhecido como “Deus connosco”. Em segundo lugar, que o sujeito tenha sua consciência desperta, aberto e disposto seu coração. E, finalmente, que reconheça essa presença única em sua inteira originalidade, a acolha como a origem da qual está procedendo sua vida; como a realidade à qual apontam suas perguntas radicais, pela qual suspira o anseio que embarga sua vida; como a meta à qual se dirige a flecha em permanente voo de sua inquietude. Para que isto ocorra é preciso que o sujeito chegue ao fundo de si mesmo, ao manancial do qual brota o arroio de sua vida, ao coração, sede de suas decisões e desejos e descubra, reconheça, “realize”: “todas as minhas fontes estão em ti”; “em ti estão as fontes da vida”; “tua luz nos faz ver a luz!”
Condições prévias e preâmbulos existenciais para iniciar o caminho da fé
Para que esse milagre aconteça muitas condições são exigidas. Em primeiro lugar, requer-se que o sujeito seja sujeito como não o é em nenhuma outra circunstância, em nenhuma outra decisão, em nenhuma outra relação das muitas que pode entabular em sua vida. Porque quando a consciência se abre à presença do Mistério com a qual está agraciado e lhe abre a porta da liberdade à sua vida, esta sofre uma comoção que sacode os fundamentos da falsa segurança em que estava instalado, dilata o horizonte limitado em que se encontrava encerrado, “empurra-o para regiões do espírito onde é impossível confundir o verdadeiro com o desejado com o que todos creem” (K. Rahner) e com o que ele mesmo até esse momento acreditava crer. Porque na decisão crente, o sujeito aposta tudo, põe tudo em jogo: Il va de tout, dizia Pascal; res tua agitur, “trata-se de ti mesmo”, diziam os antigos; de ver-se “incondicionalmente concernido” (P. Tillich). São João da Cruz expressou essa implicação total do sujeito na atitude teologal, com especial vigor, quando põe nos lábios da alma à espera do Deus com quem quer entrar na relação da fé viva: “Dando-te todo a toda minha alma, para que ela te possua todo”[10].
Para que o sujeito chegue a este grau de realização de si mesmo precisa em primeiro lugar superar formas inautênticas de vida, aquelas “formas de vida desperdiçada” (S. Kierkegaard) que o impedem ser ele mesmo.
A primeira consiste em superar a má tendência do ser humano ao “divertimento”, à diversão como forma de vida que conduz ao esquecimento de si mesmo. Esta passagem tem sido assinalada por todas as tradições espirituais: o caminho para a identificação com Brahman, o Absoluto no hunduísmo, começa pela superação da situação de maya, de ilusão, na qual o homem mundano vive estabelecido. Para poder viver espiritualmente, os estoicos recomendavam: oblivionem fugite, “fugi do esquecimento”. Pascal descreveu com todo detalhe a aloucada busca do “divertimento” e seus perigos[11]. Kierkegaard referiu-se a ela como a forma por excelência de vida desperdiçada: “A do homem que nunca se decidiu com uma decisão eterna a ser consciente enquanto espírito, enquanto eu; ou, o que dá no mesmo, que nunca se deu conta nem sentiu profundamente a impressão do fato da excelência de Deus e de que ‘ele’, ele mesmo, seu próprio eu, existia diante de Deus”[12].
A escuta do chamamento da Presença requer passar da superficialidade da vida à recuperação do centro da pessoa; da dispersão à unificação interior em torno do verdadeiro centro; da dissipação de si mesmo num ativismo desmedido à simplificação da vida em torno do único necessário.
A segunda disposição que torna impossível a atenção à Presença é a adoção de uma atitude possessiva. De novo as espiritualidades e sabedorias da história coincidem em denunciar este perigo mortal para a constituição de um sujeito verdadeiramente humano. A atitude possessiva reduz o ser humano a sujeito de posses e acaba fazendo-o escravo delas; converte o ser humano em “consumidor”. “Toda posse é contra a esperança”, escreve São João da Cruz. Não podemos esquecer as invetivas de Jesus sobre o perigo das riquezas; que a primeira bem-aventurança evangélica é “bem-aventurados os pobres”, e que ser pobre é condição para pertencer ao Reino dos Céus.
Para poder ser destinatário efetivo do chamado de Deus, capaz de escutá-lo, é ainda indispensável ser um sujeito livre; ter superado as incontáveis ataduras externas e internas, as múltiplas dependências de coisas, pessoas, ideologias, modas. As múltiplas “adições” às quais somos tão propensos e que tornam impossível dispor de si para poder entregar-se ao Outro que se apresenta a nós reclamando o mais puro exercício de nossa liberdade. E lembremos, também, que pouco importa que o pássaro esteja preso por um fio ou por uma corda grossa. Em ambos os casos, adverte São João da Cruz, ele está impossibilitado de voar.
Dito em termos positivos, ser crente requer como passo prévio, como “preâmbulo existencial”, uma forma de vida que ponha o sujeito em disposição de dizer com toda verdade: “Eis-me aqui”, à Presença que o chama. Não se trata, pois, de esforços que se fazem para conseguir apropriar-se ou dominar algo que o próprio sujeito tenha feito objeto de sua busca. “Ao homem – advertia Simone Weil – está vedado caminhar verticalmente”[13]. Trata-se muito mais de tornar-se disponível, de fazer lugar, de afundar no “vazio de infinito” que Deus pôs em seu interior, e colocar-se à altura da Realidade pela qual o ser humano é buscado[14].
Chegar ao próprio centro é condição indispensável para ser crente, mas não é suficiente. Chegado à “sala imensa” da memória humana, de sua consciência, incapaz de abarcar a si mesma, Santo Agostinho sente a necessidade de transcendê-la: “Transcenderei, pois, esta força que existe em mim [...]. Sim, vou transcendê-la para poder chegar a ti”[15]. “Suba – diz Ricardo de São Vítor – através de si mesmo, para além de si mesmo”. Chegados ao fundo de nós mesmos ou, usando outra imagem, ao “cume de nossa mente”, suspeitamos o mais além de nós mesmos que sustenta a inconsistência de nossa existência; descobrimo-nos incapazes de explicar nossa vida e convertidos num enigma para nós mesmos para o qual não temos resposta[16]; vislumbramos que o curso de nossa vida procede de um manancial que a alimenta[17]. Mas justamente aí se abre para nós a possibilidade de ser crentes ou de recusar sê-lo. Qual é o passo decisivo que nos converte em crentes?
(…)
1.3  Para uma fenomenologia da atitude crente
Temos repetido com insistência que o sujeito humano deve reconhecer e aceitar a presença originante da qual ele procede e que com seu oferecimento suscita sua existência pessoal. Mas, o que significa esse “reconhecer”, aceitar ou acolher a Presença que constitui o essencial da atitude teologal?
Colocar em Deus o centro de nossa vida numa atitude de confiança incondicional
A radical originalidade da Presença com a qual o ser humano é agraciado impõe uma originalidade igualmente radical à atitude pela qual a reconhece, identificada por nós cristãos como “atitude teologal”. O próprio termo “reconhecer” indica que se trata de outra forma de relação diferente daquela que expressamos com termos como “saber” ou “conhecer”, como formas de relação baseadas no contato com a realidade através dos sentidos, ou na formação de uma noção ou uma ideia da realidade conhecida. (..)
(…) Por isso se pôde dizer com razão que crer é uma “expropriação de si mesmo” (H.U. von Balthasar). É a desinstalação do ser humano de sua condição de sujeito e centro da realidade, como condição para que se realize o encontro com o Mistério (…)
(…)A Escritura se refere expressamente a este traço não eliminável da atitude crente em termos quase idênticos: “Segundo a conceção bíblica, a Palavra de Deus se apropria do homem inteiro e coloca seu centro de gravidade fora dele”[20]. “A fé – como também foi dito – é um ato de obediência por meio do qual o ser humano se confia total e livremente a Deus”. H. Bremond, grande conhecedor da literatura mística, escreve: “Na primeira conversão não se muda de dono; o sujeito continua sendo o “capitão de sua própria alma [...]”. Aqui, ao contrário, na segunda, ele vai entregar todo seu ser, o mais profundo. Na primeira, ele cede só o usufruto; na segunda, cede a propriedade da alma; numa, só se cedem as flores e os frutos, na outra, a árvore inteira”[21]. O Evangelho já o havia dito antes: “Quem quiser salvar sua vida, a perderá; quem consentir em perder sua vida por mim, a salvará” (Mc 8,35).  (…)

1.4  Crer cristãmente
Jesus Cristo, iniciador e consumador de nossa fé
Deus está presente em todos os seres humanos e está permanentemente com eles. Sem sua presença não poderiam existir: “Se retiras o teu alento, eles perecem e voltam a seu pó” (Sl 104,29). “Deus [...] não está longe de cada um de nós, pois nele vivemos, nos movemos e existimos” (At 17,27-28). O Vaticano II no-lo recorda: “Deus dá a todos os homens um testemunho duradouro de si mesmo nas coisas criadas” (Dei Verbum 3), e no interior deles mesmos. A história religiosa da humanidade é o testemunho da “busca às apalpadelas” que essa presença suscitou em todos os seres humanos, das respostas que estes lhe têm dado, das representações de Deus a que têm chegado e dos nomes com os quais o têm invocado.
Nós cristãos, como todos os humanos, ouvintes da Palavra, agraciados como todos eles pela presença criadora de Deus, vivemos essa condição inscritos numa tradição religiosa, nascida no seio do judaísmo, que reconhece em Jesus o rosto de Deus, a imagem pessoal do Deus invisível: “A Deus, ninguém jamais o viu; o Filho Unigênito, que está no seio do Pai, foi quem no-lo deu a conhecer” (Jo 1,18). Ainda que Jesus se inscreva na tradição dos profetas, Ele não é só um profeta. Não só fala de Deus, é a Palavra de Deus que se fez homem; revela a Deus pessoalmente. É a parábola viva de Deus. Através de sua vida e seus ensinamentos Ele nos revela Deus, não desvelando o Mistério que é Deus, mas revelando-o como Mistério.
Para assegurar e discernir a retidão de nossas representações de Deus, nós cristãos dispomos de um critério seguro: olhar para Jesus “imagem do Deus invisível”, em quem reside a plenitude da divindade.(…)
Em perfeita coerência com sua vida, seus ensinamentos em forma de parábolas, e suas obras, sinais do reino, revelam Deus como um Pai misericordioso, sempre disposto ao Perdão, que se alegra com o retorno do pecador e o celebra com alegria.
1.5  O exercício de ser crente
A fé tem vocação de experiência
(…)
Deixamos aqui de lado a experiência da fé no sentido objetivo do genitivo, isto é, a experiência que tem a fé por objeto 48], para referir-nos exclusivamente à experiência que é a fé, entendida como atitude fundamental pela qual o sujeito, convocado, interpelado pela presença de Deus que se revela a ele, a acolhe num ato de transcendimento de si mesmo e de confiança incondicional, na qual “se confia” a ela. Colocar em prática esta atitude fundamental, o ato de crer, não é um ato particular, categorial – se cabe falar assim – que se acrescenta ao resto dos atos da vida da pessoa. É uma opção fundamental que afeta o conjunto da pessoa, é “um ato do ser humano todo”; um ato de obediência por meio do qual “ele se confia total e livremente a Deus” (DV 5). Um ato, dirá Kierkegaard, pelo qual “ao querer ser si mesmo, o eu se apoia de uma maneira lúcida no Poder que o criou”, “no Poder que o fundamenta”[49]. Por isso não é exagero dizer que ser crente comporta, por parte do ser humano, uma forma nova de exercício da existência, que passa de existir a partir de si mesmo como origem e fundamento da própria vida, a existir a partir de Deus, aceito como raiz, origem e meta de seu ser. Por isso o cristianismo se refere ao crer como “um novo nascimento” (Jo 3,3-8). E afirma que a fé gera um “homem novo” (Ef 2,15; 4,24); que o crente começou a ser em Cristo “uma nova criatura” (2Cor 5,17).
Esta nova forma de existência permite caminhar “numa vida nova” (Rm 5,4) que comporta “a conversão do olhar”, que purifica a pupila da alma, “o que há de mais divino no ser humano” e a “ conversão do coração”, uma expressão com a qual São Bernardo define a fé, que expressa a cura da vontade e do desejo liberados para sua orientação ao sumo Bem, e a cura da liberdade que se eleva do livre-arbítrio, da capacidade de escolher e da autodeterminação e do domínio de si mesmo à “aspiração à graça”, “na qual consiste a verdadeira liberdade”[50].(…)
1.6 As três dimensões da atitude teologal
(…)
1.7 São Paulo, modelo de crente
(…)
A segunda Carta a Timóteo (2Tm 1,12) coloca nos lábios de Paulo, depois de aludir a seus sofrimentos : “Não me envergonho, porque sei em quem confiei”. Paulo está bem consciente de que “o eminente conhecimento de Cristo” , fruto de sua fé, não esgota as riquezas da glória, da sabedoria e da graça do Deus revelado em Jesus Cristo ( Rm 11,33; Ef 1,7; Cl 1,27). Por isso ele sabe muito bem que está longe de ter alcançado a meta do caminho que iniciou com a sua adesão e a razão da sua segurança. Esta segurança não é fruto da firmeza de sua decisão, do afinco com que se propôs  confiar em Deus com todas as forças a seu alcance. A segurança lhe vem da pessoa na qual confiou; de sua condição de realidade firme diante da inconsistência da sua própria; de sua condição de fiel a todo o custo. Por isso é o exercício de seu confiar-se a Ele, que lhe presta a convicção cada  vez mais firme de que o Deus  revelado em Jesus Cristo merece toda a confiança. E a razão da firmeza da confiança de Paulo é a “força do Evangelho de Jesus Cristo que destruiu a morte”, e a experiência vivida nos momentos de fraqueza de que “basta-te a minha graça” (2Cor 12,9). (…)
2 Paisagens para a fé (Dolores Aleixandre Parra)
“Jesus passou novamente para  a outra margem do Jordão, onde João tinha começado a batizar […]. E ali muitos creram nele” (jo 10,41-42)
Ali, precisamente naquele lugar concreto, do outro lado do Jordão. Talvez alguns, com o passar do tempo, voltariam a passar por aquele lugar, e sentiriam a mesma emoção daqueles dois discípulos que seguiram a Jesus e se lembravam de que foi exatamente “ às quatro horas da tarde”. Eles reconheciam o lugar : “ Foi aqui que comecei a crer em Jesus”. E percorriam com seu olhar cada detalhe da paisagem: o rio, as árvores, as pedras, os arbustos com as colinas da Judeia ao longe. E é que esses lugares, nos quais alguns cruzaram com Jesus antes de nós, continuam a estar ali: os montes, os caminhos, o deserto, os poços ou o lago não sabem de tempo, nem de idades, nem de mudanças.
As casas não são mais as mesmas, mas sim o solo em que foram levantadas e também os nomes de lugares que continuam gravados em nossa memória: Mambré, Belém, Nazaré, Cafarnaum, Jericó, Caná e ou outros mais.  As árvores de então também não estão mais lá, mas outras oliveiras continuam sua tarefa e as figueiras  continuam brotando quando se aproxima o verão. Talvez já não exista mais aquela árvore sob a qual se sentou Natanael ou aquela  em que Zaqueu subiu, mas outras ocuparam o seu lugar e à sua sombra vêm sentar-se caminhantes fatigados. Na primavera, as flores inundam as ladeiras das colinas da Galileia e continuam sussurrando a quem as escute que nem Salomão em todo seu esplendor se vestiu como elas. O Poço de Siquém e as fontes de Siloé e de Nazaré continuam manando, e às vezes o céu se torna avermelhado ao entardecer anunciando a chuva.
Vamos aproximar-nos dessas paisagens com respeito, como os peregrinos que visitam os “lugares santos”. Neles, homens e mulheres que nos precederam no caminho da fé viveram uma experiência de encontro com o Senhor. A história de sua fé continua sendo nossa. (…)
3  Com os olhos fixos em Jesus (José Antonio Pagola)
Por volta do ano 80, começa a circular por algumas comunidades cristãs um escrito conhecido hoje como Carta aos Hebreus. Seu autor, bom conhecedor da religião judaica, vai destacando a importância única e irrepetível de Jesus, muito superior aos veneráveis personagens da tradição bíblica. No final de sua obra, deixa claro que os cristãos podem contar com uma “grande nuvem de testemunhas” da fé na história de Israel, mas que agora nos é proposto viver “com os olhos fixos em Jesus, autor e consumador da fé” (Hb 12,2).
O objetivo desta reflexão é recuperar Jesus, o Cristo, como “autor da fé”, o único que pode regenerar nossa pequena fé, fraca e vacilante, para fazer-nos renascer para a verdadeira identidade de discípulos e seguidores de Jesus.
3.1 Voltar a Jesus Cristo
(…) Precisamos  voltar para o que é a fonte e a origem da Igreja: só isso justifica sua presença no mundo. Arraigar nossa fé em Jesus Cristo como única verdade da qual nos é permitido viver e caminhar de maneira criativa para o futuro. Recuperar o essencial do Evangelho, renascer juntos do Espírito de Jesus.
Entrar pelo caminho aberto por Jesus
(…)Os  cristãos das primeiras comunidades se sentiam seguidores de Jesus, mais do que membros de uma nova religião. Segundo Lucas, as comunidades eram formadas por pessoas que conheceram o “Caminho do Senhor” (At 18,25) e,  atraídas por Jesus, entraram por ele. Sentem-se “seguidoras do Caminho” (At 9,2)(…)
(…) Infelizmente, tal como é vivida hoje por muitos, a fé cristã não suscita “seguidores” de Jesus, mas só adeptos de uma religião. Não gera “discípulos”  que,  identificados com o seu projeto, entregam-se para abrir caminhos ao Reino de Deus, mas membros duma instituição que cumprem  melhor ou pior suas obrigações religiosas. (…)
(…) A renovação da fé está pedindo hoje que se passe de comunidades formadas maioritariamente de “adeptos” a comunidades de “discípulos” e “seguidores” de Jesus, o Cristo. Como entrar por esse caminho aberto por Jesus?
Voltar à Galileia
Os relatos evangélicos foram  compostos para oferecer-nos a possibilidade de conhecer esse caminho aberto por Jesus. É o que sugere a mensagem que as mulheres receberam junto ao sepulcro na manhã da Páscoa: “Buscais a Jesus de Nazaré que foi crucificado? Ele ressuscitou, não está mais aqui”. Não devemos buscá-lo no mundo dos mortos. Onde Ele pode ser encontrado por seus seguidores? É preciso voltar à Galileia: “Ele irá à frente de vós. Lá o vereis”(MC 16,7). Temos que ir à Galileia, voltar ao início. Fazer o percurso que os primeiros discípulos fizeram seguindo o chamamento de Jesus : escutar de novo sua mensagem, aprender seu estilo de vida a serviço do Reino de Deus, compartilhar seu destino de morte e ressurreição [93]. (…)
O Evangelho como novo começo
(…) Temos que entender e configurar a comunidade cristã como lugar onde se acolhe o Evangelho de Jesus. Um lugar humilde e frágil nestes momentos, mas um lugar onde se cuida, antes de tudo, do acolhimento do Evangelho. Temos que instaurar tempos e espaços para percorrer juntos os relatos evangélicos. Reunir os crentes, os menos crentes, os pouco crentes e inclusive os não crentes em torno do Evangelho de Jesus. Dar ao Evangelho a oportunidade de desenvolver sua frescura e sua força salvadora penetrando em nossas vidas com seus problemas, crises, medos e esperanças.
Temos que entender bem que os evangelhos são relatos de conversão. Eles não só narram o caminho aberto por Jesus, mas o fazem para gerar fé em Jesus Cristo. São relatos que convidam a entrar num processo de mudança, de mutação de identidade, de seguimento do Reino de Deus. Nessa atitude de conversão é que vamos lê-los, meditá-los e compartilhá-los nas comunidades cristãs.(…)
3.2 Crer na Boa Notícia de Deus
(…)Será que não chegou a hora de promover no interior da igreja a tarefa apaixonante de “apreender”, a partir de Jesus, como é Deus, como nos sente e nos busca, e o que quer para seus filhos e filhas?
(…)A Boa Notícia de Deus, proclamada por Jesus, não traz nada que possa impedir-nos de acolher Deus como graça, libertação, perdão, alegria e força para crescermos como seres humanos.
Deus, amigo da vida
(…) Jesus vivencia Deus como o melhor amigo do ser humano: um Deus “Amigo da vida”. Ele não oferece a seus discípulos uma informação suplementar sobre Deus. O que transmite a todos é sua experiência de Deus como um “mistério de bondade” que poderia libertar-nos de tantas ambiguidades com as quais obscurecemos seu rosto santo.
(…)Segundo Jesus, para Deus o que está em primeiro lugar é a vida das pessoas, não o culto; a cura dos e enfermos, não o sábado; a reconciliação social, não as oferendas que cada um leva para o altar do Templo; o acolhimento amistoso dos pecadores e o perdão curador de Deus, não os ritos de expiação. Jesus pronunciou um dia estas palavras inesquecíveis: “ O sábado foi instituído para o ser humano e  não o ser humano para o sábado” (Mc 2,27). O sistema religioso deve estar a serviço das pessoas.
(…) Os camponeses da Galileia tiveram que captar bem depressa a enorme diferença que havia entre João Baptista e Jesus. A preocupação suprema de Baptista é o pecado. Toda a sua atuação gira em torno do pecado do povo: denuncia os pecados, chama os pecadores para fazer penitência diante da iminente chegada de um Deus juiz e oferece um batismo de conversão e perdão aos que acorrem ao Jordão. Assim ele prepara Israel para encontrar-se com seu Deus juiz. O Baptista não cura os enfermos, não toca na pele dos leprosos, não abraça as crianças da rua, não se senta a comer com pecadores, prostitutas e indesejáveis. Não faz gestos de bondade, não alivia o sofrimento, não se entrega para fazer a vida mais humana. Não se desvia da sua missão estritamente religiosa.
Ao contrário, o primeiro olhar de Jesus se dirige ao sofrimento das pessoas mais enfermas e desnutridas da Galileia,  não a seus pecados. Ele anuncia um Deus salvador e amigo que realiza gestos de bondade. Sua vida gira em torno do sofrimento: abençoa os enfermos, liberta os leprosos da marginalização, abraça os pequeninos e frágeis, liberta os possuídos por espíritos malignos, acolhe os pecadores desprezados por todos. Isto é novo. Jesus proclama Deus curando a vida. Anuncia a salvação eterna curando a vida atual. Esta é a recordação que Jesus deixou: “Ungido por Deus com o Espírito Santo e com poder, passou pela vida fazendo o bem e curando todos os oprimidos pelo diabo, porque Deus estava com Ele” (At 10,38). (…)
Deus, o Bom Pai de todos
(…)Como dizia o grande teólogo Karl Rahner no final de sua vida: “Por Jesus sabemos que Deus é bom e nos quer bem. Não precisamos de muito mais”.
A esse bom Deus, Jesus o invoca sempre como Pai. Chama-O Abbá, uma expressão que nos lares judeus era utilizada pelas crianças pequenas ao falar com seu pai. Jesus vive Deus como alguém tão próximo, bom e entranhável que, ao comunicar-se com Ele, lhe vem espontaneamente aos lábios essa palavra carinhosa: Abbá, “Pai querido”. Não encontra expressão melhor.
Esse Bom Pai é um Deus próximo e acessível a todos. Qualquer um pode comunicar-se com Ele do mais íntimo de seu coração. Ele fala a cada um sem pronunciar palavras humanas. Ele atrai a todos para o que é bom e nos faz bem. Os simples o conhecem melhor do que os entendidos. Para encontrar-se com Ele não são necessárias liturgias complicadas como a do Templo. Basta encerrar-se num aposento e dialogar com Ele no íntimo.
(…)Esse Pai bom e próximo é de todos. Busca seus filhos e filhas onde estão, ainda que se encontrem perdidos, ainda que vivam de costas para Ele. Ninguém é insignificante a seus olhos. A ninguém dá por perdido. Ninguém está órfão, Ninguém caminha esquecido e só. Segundo Jesus, Deus “faz nascer o sol sobre bons e maus; manda chuva sobre justos e injustos” (Mt 5,43). O sol e a chuva são de todos. Deus os oferece como presente, rompendo nossa tendência para descriminar aqueles que nos parecem indignos. Deus não é propriedade dos bons.
(…) Deus não separa nem excomunga, Deus abraça e acolhe. É um erro pretender construir a comunidade de Jesus excluindo aqueles que nos parecem indignos. Isso não corresponde à Boa Notícia de Deus proclamada por Jesus.
(…)Ninguém realizou nesta terra um sinal mais carregado de esperança, mais gratuito e mais absoluto do perdão de Deus. Sua mensagem continua ressoando ainda hoje para quem a escute em seu coração: “ Quando vos virdes rachados pela sociedade, sabei que Deus vos acolhe e defende. Quando vos sentirdes julgados pela religião, senti-vos compreendidos por Deus. Quando ninguém vos perdoar vossa indignidade, confiai em seu perdão inesgotável. Não o mereceis, mas Deus é assim: amor e perdão.
Parábola para nossos dias
Em nenhuma outra parábola Jesus conseguiu sugerir-nos com tanta profundidade o mistério de Deus e o enigma da condição humana como na chamada “Parábola do Bom Pai” ou do “Filho Pródigo”, narrada no Evangelho de  Lucas (Lc 15,11-32). Nenhuma é tão atual para os nossos tempos.
O filho mais novo disse a seu pai: “Dá-me a parte da herança que me cabe”. Ao reclamá-la está pedindo  de alguma maneira a morte de seu pai. O jovem quer ser livre. Não será feliz enquanto seu pai não desaparecer de sua vida. O pai aceita sem dizer nenhuma palavra: o filho poderá escolher livremente o seu caminho.
Não acontece hoje algo parecido entre nós? Não são poucos os que querem ver-se livres de Deus, ser felizes sem a presença de um Pai eterno em seu horizonte. Deus deve desaparecer da sociedade e das consciências. E, assim como na parábola, o Pai guarda silêncio. Deus respeita o ser humano.
(…)O filho se instala prontamente numa “vida desordenada”. O termo original não sugere só uma desordem moral, mas uma vida insana, transtornada e caótica. Em pouco tempo, a sua aventura começa a converter-se em drama. Sobrevém uma “fome terrível” e ele só sobrevive cuidando de porcos, como escravo de um estranho. Suas palavras revelam tragédia: “aqui eu vou morrer de fome”. O vazio interior e a fome de amor podem ser os primeiros sinais de nossa distância de Deus. Não é fácil o caminho para a liberdade. O que nos falta? Em que estamos nos equivocando? O que poderia satisfazer o nosso coração? Temos quase tudo, por que sentimos fome?
(…) Quando o pai vê chegar seu filho faminto e humilhado, “ comove-se até às entranhas”, corre a seu encontro, abraça-o e o beija efusivamente, como  uma mãe. Interrompe a confusão do filho para poupar-lhe mais humilhações. Não exige dele nenhum rito de purificação, não lhe impõe nenhum castigo, nenhuma condição para acolhê-lo de novo em sua casa. Dá-lhe a dignidade de filho: o anel de casa e a melhor veste. Oferece ao povoado uma grande festa: banquete, música e baile. O filho deve conhecer junto de seu pai a vida digna e feliz que não pôde desfrutar longe dele. Este acolhimento nos sugere o amor de Deus melhor do que muitos livros de teologia.
Quando Deus é percebido como poder absoluto que se impõe pela força de sua lei, emerge uma religião regida pelo medo, pelo rigorismo, pelos méritos e castigos. Este Deus é uma má noticia: muitos o abandonarão. Pelo contrário, quando Deus é experimentado como bom, próximo, libertador e perdoador, nasce uma religião animada pela confiança, pela alegria, pela resposta agradecida e pela ação de graças. Este Deus é uma Boa Notícia: não aterroriza por seu poder, atrai por sua bondade, seduz por sua força salvadora. Na mensagem de Jesus está subjacente uma promessa: Deus é para os que têm necessidade de que Ele exista e seja bom.(…)
3.3 Recuperar o Projeto do Reino de Deus
Muitos cristãos vivem hoje sua fé sem conhecer o grande projeto de Deus de ir mudando o mundo para tornar possível uma vida mais humana. Alguns nem sequer ouviram falar desse projeto que Jesus chama “Reino de Deus”. Não sabem que a paixão que animou sua vida, a razão de ser de toda a sua atividade, o objetivo de todos os seus esforços foi anunciar e promover o projeto humanizador do Pai, “buscar o Reino de Deus e a sua justiça”, trabalhar para construir uma vida mais digna, mais justa e mais feliz para todos. Esta é a tarefa que Jesus confiou a seus seguidores : “Anunciai o Reino de Deus, abri caminhos à sua justiça, curai a vida”.
(…)Por isso devemos agradecer a Paulo VI e a João Paulo II que, recolhendo o sentir do Concílio Vaticano II, tenham feito duas afirmações básicas que não podemos esquecer nestes momentos. O primeiro reafirmando o carácter primordial do Reino  de Deus,  diz assim: “Somente o Reino é absoluto, o resto é relativo”. O segundo, precisando a  natureza da Igreja em relação com o Reino de Deus, afirmava: “A Igreja não é em si mesma seu próprio fim, pois está orientada para o Reino de Deus, do qual ela é germe, sinal e instrumento”[97].
O Projeto humanizador de Deus
Com uma audácia desconhecida, Jesus surpreende a todos anunciando algo que nenhum profeta de Israel se havia atrevido a declarar: “Deus já está aqui, com sua força criadora de justiça, tratando de reinar entre nós”. O Evangelista Marcos resume assim sua mensagem profética: “Completou-se o tempo e o Reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede na Boa Notícia”(Mc 1,15). Começa um tempo novo. Deus não quer manter-se longe, deixando-nos sós diante nossos conflitos, sofrimentos e desafios.(…)
(…) Temos que converter-nos a este Deus que está sempre chegando à nossa vida: mudar de modo de pensar e agir. Entrar na lógica e na dinâmica do Reino de Deus. O Pai não pode mudar o mundo, se nós não mudamos. Sua vontade de fazer um mundo diferente vai se tornando realidade em nossa resposta.
(…) Temos  que tomar a sério esta Boa Notícia de Deus. Crer no poder transformador do ser humano, atraído por Deus para uma vida mais digna. Não estamos sós. Deus está sustentado também hoje o clamor dos que sofrem e a indignação dos que trabalham pela justiça.
(…) O que surpreende é que Jesus nunca explica propriamente o que é o “Reino de Deus”.
(…) São estes os traços principais desse reino: uma vida de irmãos animada pela compaixão que tem o Pai do céu para com todos; um mundo em que se busca a justiça e a dignidade para todo ser humano, a começar pelos últimos; onde todos são acolhidos, sem excluir ninguém da convivência e da solidariedade; onde se cura a vida libertando as pessoas e a sociedade inteira de toda escravidão desumanizadora; onde a religião está a serviço das pessoas, sobretudo das mais desvalidas e esquecidas; onde se vive acolhendo o perdão de Deus e dando graças a seu amor insondável de Pai.(…)
A compaixão como princípio de ação
O que define esse Deus que quer reinar no mundo não é o poder, mas a compaixão. Ele não vem para impor-se e dominar o ser humano. Aproxima-se para tornar nossa vida mais digna e feliz. Esta é a experiência comunicada por Jesus em suas parábolas mais comovedoras [99] e que inspira toda a sua trajetória a serviço do Reino de Deus. Jesus não pode experimentar Deus acima ou à margem do sofrimento humano. A compaixão é o modo de ser de Deus, a sua maneira de olhar o mundo, o que o move a torna-lo mais humano e habitável.
(…) A partir de sua experiência radical da compaixão, Jesus introduz na história um princípio decisivo de ação: “ Sede compassivos como vosso Pai é compassivo” (Lc 6,36) [100]. A compaixão ativa e solidária é a grande lei da dinâmica do reino.
(…) O primeiro passo é resgatar a compaixão de uma conceção sentimental e moralizante. Não reduzi-la a assistência caritativa nem a obra de misericórdia. Na mensagem e na atuação profética de Jesus subjaz um grito de indignação absoluta: o sofrimento dos inocentes deve ser tomado a sério; não pode ser aceite como algo normal, pois é inaceitável para Deus. O que Jesus está  reclamando ao pedir-nos que sejamos compassivos como o Pai é uma maneira nova de relacionar-nos com o sofrimento injusto que existe no mundo.
(…) A figura do samaritano, na parábola narrada por Jesus, é o modelo de quem vive imitando a compaixão do céu. O Samaritano vê o ferido no caminho, comove-se e se aproxima dele: enfaixa suas feridas, cura-as com azeite e vinho, coloca-o montado em sua própria cavalgadura, leva-o a uma pousada, cuida dele, compromete-se a assumir os gastos…(Lc 10,30-37). (…)
Os últimos hão de ser os primeiros
Podemos dizer que a primazia dos últimos inspirou sempre a atividade de Jesus a serviço do Reino de Deus. Para Ele, os últimos são os primeiros. Ser compassivo como o Pai exige buscar a justiça de Deus a começar pelos últimos.
(…) Segundo o relato de Lucas, o Espírito de Deus empurra Jesus para os mais pobres. Na sinagoga de Nazaré apresenta-o aplicando a si mesmo estas palavras do Livro de Isaías : “ O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu. Enviou-me para anunciar aos pobres a Boa Notícia, para proclamar a libertação dos cativos e dar a vista aos cegos, para dar liberdade aos oprimidos e proclamar um ano de graça do Senhor”(Lc 4,16-22). Fala-se aqui de quatro grupos de pessoas: os “pobres”, os “encarcerados”, os “cegos” e os “oprimidos”. Eles resumem e simbolizam a primeira preocupação de Jesus: os que leva mais dentro do seu coração. Nós falamos de “democracia”, “direitos humanos”, “progresso”, “Estado de bem-estar”…Jesus sugere começar por resgatar a vida dos últimos, fazendo-a mais saudável, mais digna e mais humana.  (…)
Recuperar o Pai-nosso como oração do Reino
O Pai-nosso é a oração que Jesus deixou em herança aos seus. É a única que lhes ensinou para alimentar a identidade dos seus seguidores e colaboradores no projeto do Reino de Deus.
(…) O Pai-nosso nos revela, como nenhum outro texto evangélico, os sentimentos que Jesus guardava em seu coração. É a melhor síntese do Evangelho- brevioloquium Evangelii-,a oração que melhor identifica Jesus. (…)
3.4 Seguir Jesus, o Cristo
Jesus iniciou  um movimento profético de seguidores e seguidoras aos quais confiou a tarefa de anunciar e promover o projeto do Reino de Deus. (…)
(…) o critério primordial e a chave decisiva para entender e viver a fé cristã é seguir Jesus Cristo. Quem o segue vai descobrindo o mistério que encerra nele, coloca-se na perspetiva correta para entender sua mensagem e vai aprendendo a trabalhar hoje a partir de sua Igreja a serviço do Reino de Deus. Seguir a Jesus Cristo constitui o núcleo, o eixo e a força que permite a uma comunidade cristã desenvolver sua fé em Jesus Cristo.
Por isso, seguir a Jesus é a primeira opção que o cristão deve fazer. Esta decisão muda tudo. É começar a viver de maneira nova a adesão a Jesus e a pertença à Igreja. Encontrar, por fim, o caminho, a verdade, sentido, a razão do viver diário.(…)
Dinâmica do seguimento a Jesus
Para seguir a Jesus, o decisivo é escutar seu chamamento. Os relatos evangélicos deixam isto muito claro. Ninguém se põe a caminho seguindo os passos de Jesus por sua própria intuição ou por seus desejos de viver um ideal. É Jesus quem toma sempre a iniciativa. O seguimento começa quando alguém se sente chamado pessoalmente por Ele e acolhe o seu chamamento. Por isso, a fé cristã não consiste primordialmente em crer em algo, mas em crer em Alguém por quem nos sentimos atraídos e chamados: “Vem e segue-me”.
(…) O seguimento exige uma dinâmica de movimento. Seguir Jesus significa dar passos concretos: pôr-nos a caminho, converter-nos a Jesus Cristo, identificar-nos cada vez mais com Ele…Quem se detém ou se instala em sua própria vida vai ficando longe de Jesus. O contrário do seguimento é o imobilismo. (…)
Alguns traços dos seguidores de Jesus
Nem todos seguimos Jesus da mesma maneira. Francisco de Assis, Teresa de Ávila e Francisco Xavier, todos os três seguem a Jesus, mas o fazem acentuando aspetos diferentes da pessoa de Jesus. Há, contudo, alguns traços que não podem faltar em um seguidor fiel que caminha atrás de seus passos:
Em primeiro lugar, Jesus é para seus seguidores o caminho concreto que nos leva ao Pai. Ninguém jamais viu a Deus. O Filho Unigénito, que está no seio do Pai e que se encarnou em Jesus, foi quem “no-lo deu a conhecer” (Jo 1,18). Esta é a nossa fé: Deus não é uma palavra vazia, uma ideia abstrata, uma definição admirável. Para nós, Jesus é o “Rosto humano de Deus”. Vendo Jesus, estamos a ver o Pai(Jo 14,9). Conhecendo o Pai, vamos conhecendo como Ele se preocupa connosco, como nos busca quando andamos perdidos, como nos acolhe quando nos sentimos desvalidos, como nos perdoa e levanta quando nos vê caídos, como nos anima e sustenta quando nos vê pequenos e frágeis.
Em segundo lugar, Jesus ensina aos que o seguem a serem filhos e filhas de Deus, vivendo duas atitudes fundamentais. Primeiro, a confiança plena. A vida inteira de Jesus transpira uma confiança total em seu Pai. Entrega-se a Ele sem  cálculos, receios nem estratégias. Por isso tanta pena lhe causa “a pequena fé” de seus discípulos. Segundo, essa confiança no Pai o faz viver numa atitude de docilidade incondicional. Para Ele, o primordial é buscar e fazer a vontade do Pai, de maneira criativa, livre e ousada. Ninguém o afastará desse caminho. Assim viverão também seus seguidores.
Seguindo uma corrente que se vinha gestando no judaísmo, também Jesus estabelece uma  estreita conexão entre o amor a Deus e o amor ao próximo. Os dois são inseparáveis. Não é possível amar o Pai e desentender-se com o irmão. O que vai contra o ser humano, vai contra Deus. Mas nas comunidades cristãs se recordava o modo peculiar de amar, próprio de Jesus. No Evangelho de João, assim se resume a herança: “Este é o meu mandamento: que vos ameis uns aos outros como eu vos amei”(Jo 15,12). Por isso, os seguidores de Jesus se esforçam para amar como Ele amou: oferecendo o perdão aos que nos ofenderam, praticando a compaixão solidária com os mais necessitados, dando prioridade aos mais pobres e desvalidos.
Por último, não devemos esquecer que seguir a Jesus é viver a serviço do projeto do Reino de Deus inaugurado por Ele. Os evangelhos resumem esta missão confiada a Jesus pelos seus com diferentes linguagens [102]: hão de sentir-se enviados por Ele como Ele é enviado pelo Pai (João); hão de ser em toda a parte “testemunhas de Jesus” (Lucas); hão de “fazer discípulos de Jesus” batizando e ensinando todos os povos a viver como Ele (Mateus).
Construir a Igreja de Jesus
Nós seguidores  de Jesus anunciamos e promovemos o Reino de Deus a partir de sua Igreja. Por isso, uma de nossas tarefas mais importantes é contribuir para fazer com todos uma Igreja mais fiel a Jesus e a seu projeto do Reino de Deus. Mas naturalmente, nossa primeira contribuição há de ser nossa própria conversão. Por isso não são poucas as perguntas que podemos fazer em nossas comunidades.(…)
3.5 Escândalo e loucura da cruz
Segundo os relatos evangélicos, os que passam diante de Jesus crucificado no alto do Gólgota zombam dele e, rindo de sua impotência, lhe dizem: “Se és o Filho de Deus, desce da cruz”. Jesus não responde à provocação. Sua resposta é um silêncio carregado de mistério. Precisamente porque é Filho de Deus, permanecerá na cruz até à morte. Esta é a fé dos seguidores de Jesus à luz de sua trajetória humana e a partir de sua experiência de ter-se encontrado com Ele, cheio de vida, depois de sua execução.
Os primeiros cristãos sabiam que sua fé em um Deus crucificado só podia ser considerada como um escândalo e uma loucura. Também nós o sabemos. Nunca religião alguma se atreveu a afirmar algo semelhante. Mas continuamos confessando a Deus crucificado para não esquecer jamais o “amor louco” de Deus pela humanidade. É um escândalo, e uma loucura. No entanto, para nós que seguimos Jesus e cremos no mistério redentor que se encerra em sua morte, é a força que sustenta nossa esperança última e nossa luta por um mundo mais humano.
O gesto supremo de Deus
Não são poucos os cristãos que entendem a morte de Jesus na cruz como uma espécie de “negociação” entre Deus Pai e seu Filho Jesus. Segundo esta maneira de entender a crucifixão, o Pai, justamente ofendido pelo pecado dos seres humanos, exige para salvá-los uma reparação que o Filho lhe oferece entregando sua vida por nós. Se fosse assim, a imagem de Deus ficaria radicalmente pervertida, pois Deus se apresentaria diante de nossos olhos como um ser justiceiro, incapaz de perdoar gratuitamente: uma espécie de credor implacável que não pode salvar-nos, se não for saldada previamente a dívida que foi contraída com Ele. Onde ficaria a Boa Notícia de Deus proclamada por Jesus? Com razão, o pensador francês René Girard fazia esta observação há alguns anos: “Deus não só reclama uma nova vítima, mas reclama a vítima mais preciosa e querida: seu próprio Filho. Inegavelmente, este postulado contribuiu mais do que qualquer outra coisa para desacreditar o cristianismo aos olhos dos seres humanos de boa vontade no mundo moderno”.
Tudo isto requer um profundo esclarecimento. Na fé dos primeiros cristãos, o Pai do céu não aparece como alguém que exige previamente sangue para satisfazer sua honra e assim possa perdoar. Ao contrário, o Pai envia seu Filho ao mundo porque o ama, e nos oferece a salvação sendo nós ainda pecadores. Jesus, por sua vez, nunca aparece tratando de influir no Pai o seu sofrimento para satisfazer a sua honra ferida e assim obter uma atitude mais benévola para com os seus filhos.
Então, quem quis a cruz e porquê? Certamente não foi o Pai, pois Ele não quer que se cometa crime algum e menos ainda contra seu Filho querido, mas os que condenam Jesus à morte, porque recusam o Reino de Deus que Ele busca introduzir no mundo, abrindo caminho à justiça, à compaixão e à solidariedade. O que o Pai quer, não é que matem seu Filho,  mas que seu Filho seja fiel a seu projeto salvador até ao fim: que continue buscando o Reino de Deus e a sua justiça para todos, que continue encarnando seu amor a toda a humanidade até ao extremo. Por sua vez, Jesus, o Filho amado, entrega sua vida porque se mantém fiel a esse projeto salvador do Pai, encarnando seu amor infinito por seus filhos e filhas.

Na cruz, Pai e Filho estão unidos num mesmo Amor, não buscando sangue e morte, mas manifestando até que extremo insondável chega a loucura de seu amor pelas criaturas. Na cruz, ninguém está oferecendo nada ao Pai, para que se mostre benevolente com seus filhos. É Ele que está entregando o que mais quer: seu próprio Filho. Jesus sofre a morte em sua carne humana; o Pai sofre a morte de Jesus em seu coração de Pai. Paulo não duvida em afirmar sua fé nesse gesto supremo de Deus dizendo: “Em Cristo estava Deus reconciliando o mundo consigo e não levando em conta as transgressões dos seres humanos” (2Cor 5,19). Assim está Deus na cruz: não acusando nossos pecados, mas oferecendo-nos seu perdão salvador.
Um Deus crucificado
As perguntas são inevitáveis: Será que é possível crer em um Deus crucificado pelos seres humanos? Nós nos damos conta do que estamos dizendo? O que faz Deus numa cruz? Como pode subsistir uma religião arraigada numa conceção tão absurda?
Um “Deus crucificado” constitui uma revolução e um escândalo que nos obriga a questionar todas as ideias que fazemos da divindade. O Crucificado não tem rosto nem traços que as religiões atribuem ao Ser Supremo. O Deus crucificado não é um ser onipotente e majestoso, imutável e feliz, alheio aos nossos sofrimentos, mas um Deus impotente e humilhado que compartilha connosco a dor, a angústia e até a própria morte.
Diante do Crucificado, ou termina nossa fé convencional em Deus, ou nos abrimos a uma compreensão nova e surpreendente de um Deus que, encarnando em nosso sofrimento, nos ama de modo incrível. Começamos a intuir que Deus sofre connosco. Nossa miséria o afeta.
(…) Despojado de todo poder dominador, de toda a beleza estética e de toda auréola religiosa, Deus se nos revela, no mais puro e insondável de seu mistério, como amor e só amor. Não responde ao mal com o mal. Prefere ser vítima de suas criaturas, antes que seu verdugo. Assim é o Deus no qual cremos nós seguidores de Jesus: um Deus frágil que não tem mais poder que seu amor.
Um Deus identificado com as vítimas
(…) Ele se identificava com as vítimas inocentes e com os esquecidos pela religião do Templo. Executado sem piedade numa cruz, nele Deus se revela agora a nós, identificado para sempre com todas as vítimas inocentes da história. Do silêncio da cruz Ele é o juiz mais firme e manso do aburguesamento de nossa fé, de nossa acomodação ao bem-estar e nossa indiferença diante dos que sofrem.
Este Deus crucificado coloca em questão toda a prática religiosa que pretenda dar culto a Deus esquecendo o drama de um mundo onde se continua crucificando os mais fracos e indefesos. Não podemos adorar o Crucificado e viver de costas para o sofrimento de tantos seres humanos destruídos pela fome, pelas guerras ou pela miséria. Não nos é permitido continuar vivendo como espectadores desse sofrimento imenso, alimentado uma ingénua ilusão de inocência.(…)
(…)Que sentido tem levar uma cruz sobre o nosso peito, se não sabemos carregar a mais pequena cruz das pessoas  que sofrem junto a nós? (…)
Seguir a Jesus carregando a cruz
Um seguimento sem cruz rapidamente se converte numa “religião burguesa”, na qual se dilui a radicalidade do Evangelho e onde se põe Deus a serviço de nosso bem-estar. O risco é grande. Já o advertiu o teólogo -mártir Dietrich Bonhoeffer, comentado a reação de Pedro, que queria afastar Jesus de seu caminho para a cruz: “Isto prova que, desde o princípio, a Igreja se escandalizou com Cristo sofredor. Não quer que seu Senhor lhe imponha a lei do sofrimento”. (…)
Segundo os relatos evangélicos, Jesus chama seus discípulos a segui-lo pondo-se a serviço incondicional do Reino de Deus. A cruz é apenas o sofrimento com o qual se encontrarão como consequência desse seguimento: o destino doloroso que inevitavelmente  terão de compartilhar com Ele se seguem realmente os seu passos.
(…) Quem segue Jesus não busca “cruzes”, mas aceita a crucifixão que lhe vem por viver seguindo os passos de Jesus. Aceita viver crucificado com Cristo. Sua cruz o acompanha ao longo de sua vida. No trabalho do reino, é tão importante o “fazer” como o “padecer”. Temos de “fazer” um mundo mais justo e humano, uma igreja mais fiel a Jesus e mais coerente com o Evangelho. E temos que “padecer” por um mundo mais digno e por uma Igreja mais evangélica (…)
3.6 Cristo ressuscitado, mistério de esperança
(…) Ressuscitando Jesus, o Pai confirmou sua vida e sua mensagem do Reino de Deus e toda a sua atuação. O que Jesus anunciou na Galileia sobre a compaixão e misericórdia do Pai é verdade: Deus é como sugere Jesus em suas parábolas. A maneira de ser de Jesus e a sua atuação profética coincidem com a vontade do Pai. A solidariedade de Jesus com os que sofrem, sua defesa dos pobres, seu perdão aos pecadores: é isso que Deus quer. Jesus tem razão quando busca uma vida mais digna e feliz para todos, a começar pelos últimos. Esse é o maior anseio que Deus guarda em seu coração. Esse é o caminho que conduz à vida.
(…)Cristo, ressuscitado pelo Pai, é nossa esperança. Nele descobrimos a intenção profunda de Deus confirmada para sempre: uma vida plena para a criação inteira, uma vida libertada para  sempre do mal e da morte, o Reino de Deus feito realidade. Nós estamos ainda a caminho. Tudo continua mesclado e confuso: justiça e injustiça, morte e vida, luz e trevas. Tudo está inacabado, a meias e em processo. Mas a força secreta do Ressuscitado está atraindo tudo para a Vida definitiva. (…)
Recuperar a experiência viva do Ressuscitado
Quando os primeiros os primeiros cristãos falam do Ressuscitado, não o fazem só para confessar sua fé  naquele acontecimento singular e irrepetível pelo Deus “ressuscitou de entre os mortos” a Jesus para introduzi-lo na plenitude de sua própria vida, mas, sobretudo, para viver agora sua fé em Cristo “ressuscitando para uma vida nova”. Segundo Paulo de Tarso esta experiência consiste em “conhecer a Cristo e o poder de sua ressurreição”(Fl 3,10). Ele vive com tal intensidade esta experiência que chega a dizer: “Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim” (Gl 2,20). Os discípulos, que seguiram a Jesus pelos caminhos da Galileia, hão de aprender agora a viver do Espírito do Ressuscitado, que dá a vida(1Cor 15,45).
Quando se enfraquece nos cristãos esta experiência do Ressuscitado, a Igreja corre o risco de ficar sem força vivificadora. Sem o Espírito do Ressuscitado a liberdade se asfixia, a comunhão facilmente se rompe, os carismas se extinguem, o povo e a hierarquia se distanciam. Sem o Espírito do Ressuscitado opera-se um divórcio entre teologia e espiritualidade, entre doutrina e prática evangélica. Sem o Espírito, a esperança é substituída pelo temor, a audácia pela covardia e a vida cai na mediocridade.
(…)Temos que reavivar nossa fé recuperando a experiência viva do Ressuscitado.  De mameira oculta, mas real.
(…)Ele está connosco “todos os dias até o fim do mundo” (Mt 28,20). Está em nossas lágrimas e penas como consolo permanente e misterioso. Está em nossos fracassos e impotência como força segura que sustenta. Está em nossas depressões acompanhando-nos em nossa solidão e tristeza. Está em nossos pecados como misericórdia que nos suporta com paciência infinita e nos compreende, perdoa e acolhe para sempre. Está inclusive em nossa morte como sopro de vida eterna que triunfa quando parece que está tudo perdido. Nenhum ser humano está só. Ninguém vive esquecido. Nenhuma queixa cai no vazio. O Ressuscitado nos acompanha.
O novo rosto de Deus
Os discípulos já não são mais os mesmos. O encontro com Jesus, cheio de vida, depois de sua execução, transformou-os totalmente. Eles começaram a ver tudo de maneira nova. Deus era o ressuscitador de Jesus. Tiraram de imediato as consequências.
Deus é amigo da vida. Agora não havia mais nenhuma dúvida. O que Jesus havia dito era verdade: “ Deus não é um Deus de mortos, mas de vivos”. Os seres humanos poderão desatribuir a vida de mil maneiras, mas, se Deus ressuscitou Jesus, isto significa que Ele só quer vida para seus filhos. Não estamos sós nem perdidos diante da morte. Podemos contar com um Pai que, acima de tudo, inclusive acima da morte, quer nos ver cheios de vida. Daí em diante só há uma maneira cristã de viver que assim se resume: introduzir vida onde outros introduzem morte.(…)
Entrar numa dinâmica de ressurreição
Onde e como viver a fé na ressurreição de Jesus, sem reduzi-la  a uma afirmação teórica e inoperante? Como vivenciar o poder de sua  ressurreição? Como viver a fé a partir de uma dinâmica de ressurreição?
O primordial é, sem dúvida, morrer ao pecado que nos desumaniza, e ressuscitar para a vida nova, mais arraigada em Cristo. Não só isso. Acolher também o Espírito do Ressuscitado para ressuscitar tudo que há de bom em nós, e que, talvez, esteja morto. Reavivar nossa fé apagada, nossa esperança lânguida e, sobretudo, nosso amor medíocre: “ Não sabemos que passamos da morte à vida, porque amamos os irmãos. Quem não ama, permanece na morte” (1Jo 3,14).
Assim, a ressurreição de Cristo  nos introduz numa dinâmica de crescimento. Assim são exortadas as primeiras comunidades cristãs: “vivendo segundo a verdade e no amor, cresceremos em tudo,  achegando-nos àquele que é a Cabeça de Cristo” (Ef 4,15). Não se fala somente do crescimento individual de cada fiel, mas do crescimento de toda a Igreja, “realizando o crescimento do Corpo para sua edificação no amor”(Ef 4,16). Não se trata de crescer em número, em poder ou em prestígio, mas de “revestir-nos do Homem Novo”, que é Cristo Senhor.
A dinâmica de ressurreição é sempre luta pela vida. O Deus que se revela na ressurreição de Jesus é alguém que introduz vida onde nós introduzimos morte. Um Pai “apaixonado pela vida” que está nos exortando a estar presentes onde se causa morte, para defender a vida e lutar contra aquilo que destrói ou desumaniza (mortes violentas, fome, marginalização, aborto, solidão…)
O Horizonte da nossa esperança
Arraigados em Jesus, ressuscitado por Deus para sempre, intuímos, desejamos e cremos que o Bom Pai está conduzindo para sua verdadeira plenitude o anseio de vida, de justiça e de paz que se encerra no coração da humanidade e na criação inteira. Um dia conheceremos uma vida na qual já não haverá mais pobreza nem dor; ninguém estará triste, ninguém terá que chorar. Por fim, poderemos presenciar os que vêm em barcos  chegar à  sua verdadeira pátria.
Apoiados  em Jesus ressuscitado, nós rebelamos com todas as nossas forças contra o facto de que essa imensa maioria de homens, mulheres e crianças, que só conheceram miséria, fome, humilhação e lágrimas nesta vida, fique esquecida para sempre. Também nos rebelamos contra o facto de que tantas pessoas sem saúde, enfermos crónicos, incapacitados físicos e psíquicos, pessoas mergulhadas na depressão, cansadas de viver e de lutar, não conheçam jamais  o que é viver em paz e saúde. Um dia todos e cada um hão de escutar as palavras do Pai, amigo da vida: “ Entra no gozo de teu Senhor”.
A partir da nossa fé no Ressuscitado cremos que nossos esforços por um mundo mais humano e feliz não se perderão no vazio. Tudo o que aqui ficou pela metade, o que não pôde ser,  o que deturpamos com nossa inércia ou o nosso pecado, tudo alcançará em Deus sua plenitude. Não nos resignamos que Deus seja para sempre um “ Deus oculto” cujo olhar não podemos conhecer, nem sua ternura e seu abraço. Vamos encontra-Lo gloriosamente com Jesus.
Fundamentados em Jesus ressuscitado, cremos que as horas alegres e as experiências amargas, as “pegadas” que deixamos nas pessoas e nas coisas, o que aqui construímos com alegria e/ou com lágrimas, tudo ficará transfigurado. Já não conheceremos a amizade que termina, a festa que acaba, a despedida que entristece, nem o amor que se apaga. Deus será tudo em todos. Um dia escutaremos dos lábios de Deus estas palavras incríveis: “ Eu sou a origem e o final de tudo. Ao que tenha sede eu lhe darei de graça do manancial da água da vida”(Ap 21,6). De graça, sem merecê-lo, assim saciará Deus a sede que existe dentro de nós. (…)
Contracapa
(….)
A geografia do corpo humano, relacionada com a fé, mostra-se rica em lugares. Pés que andam ou desandam veredas, mãos que agarram ou soltam, ouvidos que escutam ou estão fechados…Mas, provavelmente, não haja outro lugar que tenha um papel tão peculiar como os olhos. Antes do contacto físico - e contando também que possam existir olhos cegos -, eles são vigias encarregados de vislumbrar, quando ainda estão longe, tanto as presenças desejadas como as indesejáveis. Por isso os olhos podem certamente ser considerados como uma autêntica porta da fé, como acontece com o discípulo amado quando descobre a presença do Senhor ressuscitado à margem do lago da Galileia (Jo 21)
Dolores Aleixandre Parra, RSCJ, foi professora de Sagrada Escritura na Universidad Pontificia Comilhas (Madrid). Colabora habitualmente nas revistas Sal Terrae, Alandar e Vida Nueva. É autora de mais de uma dúzia de livros.

Juan Martín Velasco é professor-emérito da Universidad Pontificia de Salamanca. Foi diretor do Instituto Superior de Pastoral (Madrid) durante dezasseis anos e reitor do Seminário Conciliar de Madrid de 1977 a 1987. Autor de numerosas obras e artigos sobre filosofia e fenomenologia da religião.
José António Pagola foi vigário episcopal da Diocese de San Sebastián por mais de vinte anos e diretor do Instituto de Teologia e Pastoral dessa cidade. Desenvolve uma intensa atividade com grupos de crentes e afastados. Dele, a Vozes traduziu: Jesus – aproximação histórica (2010); Pai-nosso: orar com o espírito de Jesus(2012) e comentários aos evangelhos de Lucas, Marcos, João e Mateus.”
“ Extratos retirados do livro ‘Olhos  fixos em Jesus’, dos autores, Dolores Aleixandre Parra, Juan Martín Velasco e José António Pagola, EDITORA VOZES, Petrópolis-Brasil” “Uma tradução Brasileira de um Livro fantástico! Este Livro está disponível nas livrarias Portuguesas em formato e-book”, podendo ser adquirido  e lido na íntegra. "