sábado, 22 de abril de 2017

São Paulo e a dimensão contemplativa da missão

 
Ao princípio parecia-lhe interessante. Ser água da montanha. Morar nas alturas, cantar naquele silêncio, onde só as águias faziam o ninho. A cada passo, elas vinham ter com a água beijavam-na com ternura e neste beijo matavam a sede.
Descia a encosta, despreocupada e feliz e cá em baixo, eram as pessoas que iam ter com ela. Tomavam-na nas mãos, matavam a sede, depois enchiam as bilhas e lá partiam rumo à aldeia. Ouvia-lhes os segredos, sabia das suas vidas e sentia-se da família delas.
Às vezes, eram os trabalhadores ao fim do dia que vinham ter com ela, lavavam as mãos e os pés, às vezes o rosto e partiam felizes com a sua frescura. E as crianças, no fim da escola, vinham brincar com ela, divertir-se e chapinar.
Ao princípio, a água sentia-se mesmo feliz.
Mas pouco a pouco deu em andar cabisbaixa sem gosto para viver naquelas fragas. Afinal, as águias tinham todo o espaço para voar enquanto ela andava sempre de rastos, sem asas para as alturas. As pessoas vinham à fonte, é verdade que a apreciavam e a mimavam, mas logo que enchiam a bilha, cada qual partia, a pensar mais na sua vida do que na água que levava. Mesmo os que vinham lavar os pés e as mãos olhavam mais para os pés e para as mãos do que para ela. Até as crianças se esqueciam dela logo que a sineta tocava para as aulas.
Era triste a vida de uma fonte na montanha. Até que um dia a água resolveu escrever uma carta a Deus a pedir-lhe para ser outra coisa. Estava cansada se de ser água para os outros, de não ter família sua, de não ter histórias para contar.
E todas as manhãs, ainda antes de sol nascer, a água olhava para o cimo da montanha ver se a resposta de Deus chegava. Como Deus parecia distante que não havia meio de responder à sua carta.
Até que um dia, reparou que as águias mal bebiam, como se tivessem medo de a magoar. E lá em baixo, na planície, as pessoas só enchiam meia bilha, como se receassem que a água não chegasse para todos. E as crianças, já não chapinavam nela e a gente grande regressava a casa com o suor do campo, sem ousar tocar-lhe.
Estava a água muito intrigada a pensar no porquê desta mudança, quando Deus se aproximou devagarinho e ficou-a olhá-la em silêncio. E a água viu o rosto de Deus reflectido nela! Trazia uma carta na mão. Era a resposta ao seu pedido. Vinha dizer-lhe adeus e rever-se nela pela última vez. “Sabes, tu, assim pura e transparente, eras o meu espelho. Eu precisava de ti para matar a sede às águias da montanha, dar de beber à aldeia, refrescar as pessoas cansadas do trabalho, divertir as crianças. Por teu intermédio, muitos se fizeram meus filhos. O meu Espírito não desceu sobre ninguém sem que primeiro não fosse purificado por ti. Nos meus tempos da Palestina, foi a única coisa que eu pedi para mim: um copo de água junto de um poço. Era um dia de muito sol e de muito cansaço, mas que matou a sede a uma cidade inteira.
A água estava deslumbrada com o que ouvia. Nunca se vira tão transparente e tão pura. E tão útil e fecunda. E quase sem o Senhor dar por ela, tirou-lhe a carta da mão e deitou-a ao ribeiro. E a carta lá partiu a cantar, toda feliz pelas fragas da montanha. E a água ficou-se a olhar para Deus, feliz por ser água da fonte.
Falar do mistério da missão em S. Paulo é penetrar numa fonte sempre a correr, em que nós mergulhamos e onde bebemos toda a pureza das terras altas.
1. A missão como mistério
A imagem que guardamos de S.Paulo é a de um missionário itinerante, sempre em viagem, infatigável, levando o Evangelho a todos os povos, cada vez mais distantes. Parece que lhe servia melhor a veste de guerreiro que o burel de místico. Mas a verdade é que o grande desafio que S.Paulo nos lança hoje, mais que a expansão do Evangelho é o da dimensão contemplativa da missão. Ele é sem dúvida o teólogo que mais penetrou no mistério da missão apesar das suas viagens constantes e da sua actividade  permanente , S.Paulo nunca viveu à superfície, foi sempre ao fundo das suas experiências e dos valores em que jogou a sua vida.
A carta aos Efésios é certamente a mais bela carta que ele escreveu;  nessa carta ele toma-nos pela mão e leva-nos quase de chofre à profundidade do mistério da missão:
A mim, o menor de todos os santos, foi dada a graça de anunciar aos gentios a insondável riqueza de Cristo, e a todos iluminar sobre a realização do mistério escondido desde séculos em Deus, o criador de todas as coisas, para que agora, por meio da Igreja, seja dado a conhecer,  aos Principados e às Autoridades no alto do céu a multiforme sabedoria de Deus, de acordo com o desígnio eterno  que Ele realizou em Cristo  Jesus Senhor Nosso. É por isso que eu dobro  os joelhos, diante do Pai, do qual recebe  o nome toda a família nos céus e na terra, que ele vos conceda de acordo com a riqueza da sua glória, que sejais cheios da força  pelo seu Espírito,  para que se robusteça em vós o homem interior que Cristo pela fé, habite nos vossos corações, que estejais enraizados  e alicerçados no amor, para terdes a capacidade de apreender,  com todos os santos, qual a largura, o comprimento, a altura e a profundidade…a capacidade de conhecer  o amor de Cristo que ultrapassa todo o conhecimento, para que sejais repletos, até receberdes toda a plenitude de Deus” ( Ef. 3, 8-20)
Este texto que Paulo escreveu no primeiro ano do seu cativeiro é um texto fundamental para a teologia da missão. A missão nasce no seio de Deus é preciso fazer essa viagem para chegarmos ao umbral da missão.
A palavra “mistério” com que S.Paulo identifica a missão, é uma das palavras mais densas de conteúdo de toda a Sagrada Escritura. O Novo testamento cita-a 25 vezes e os Manuscritos o do Mar Morto ensinam-nos que ela era corrente nas comunidades cristãs das origens.
S. Paulo fala constantemente desse mistério aos Efésios e explica-lhes que ele não é senão desígnio de Deus, o seu projecto de salvar todos os homens, por meio de seu Filho. “Deus amou de tal maneira o mundo que lhe deu o seu Filho”, é certamente a palavra mais bela de toda a Sagrada Escritura. È neste projecto de Deus que a missão tem a sua vertente mais profunda. Foi o Pai e não a Igreja que concebeu o plano de salvar todos os homens e de os pôr em comunhão com o Pai. A missão é terra e privilégio de Deus. “ Ensinamos a sabedoria de Deus, misteriosa e oculta, que Deus , antes dos  séculos, de antemão destinou para nossa glória…Como está escrito, nem os olhos viram  nem os ouvidos ouviram, nem jamais penetrou  em coração humano, o que Deus tem preparado  para aqueles que o amam. Mas a nós Deus o revelou pelo seu Espírito” ( ! Cor 2, 6-9)
S.Paulo tem consciência de que ao anunciar o Evangelho não fazia por conta própria: “ Eu mesmo, quando fui ter convosco, irmãos, não me apresentei com prestígio da linguagem ou da sabedoria para vos anunciar os mistérios de Deus. Julguei não dever saber outra coisa entre vós, a não ser Jesus Cristo este, Crucificado. Estive no meio de vós cheio de fraqueza, de receio e de grande temor. A minha palavra e a minha pregação nada tinham de argumentos persuasivos da sabedoria humana, mas eram uma demonstração do poder do Espírito, para que a vossa fé não se baseasse na sabedoria dos homens, mas no poder de Deus “ ( 1 Cor  2, 1-5). È a maior confissão que Paulo faz da sua vocação apostólica.
Era frequente, antes do Vaticano II, fundamentar a missão no mandato de Cristo de anunciar o Evangelho a todos os povos. Ora o Ad Gentes, quase como eco da Lumen Gentium, faz remontar a missão à sua verdadeira fonte: a missão tem origem na Trindade de Deus. “
O contributo mais decisivo do Vaticano II  para a teologia da missão foi o ter situado a missão na sua verdadeira fonte: a missão nasce em Deus, é dom de Deus. A nossa colaboração missionária consiste apenas em nos deixarmos envolver por esse dom Anunciar o Reino é deixar transparecer este dom de Deus que nos foi confiado no dia do nosso Baptismo.
O missionário antes de se entregar aos homens que quer evangelizar, entrega-se a Deus que quer amar. Nós somos missionários na medida em que nos deixamos tocar pelo mistério de Deus. A planificação pastoral de Deus é sempre anterior e mais vasta que a nossa. Esse olhar apaixonado por Deus é fundamental para identificar e legitimar qualquer iniciativa missionária. È a nossa credencial. Só os santos e os profetas podem entrar na terra da missão.
Esta leitura contemplativa da missão faz com que ela seja uma amizade que se descobre pouco a pouco, à medida que nos abrimos a ela. Exige a entrega do coração para se revelar. De facto, em João, os discípulos em vez de serem chamados como nos sinópticos, são atraídos, seduzidos por Jesus e é aprofundando esta amizade que eles entram na missão: “Mestre, onde moras? Vinde e vede” È preciso entrar na sua casa para acolher o dom da missão. A missão não se impõe. Só o amor a pode motivar. O diálogo é o espaço privilegiado para Jesus comunicar o dom do Pai. No diálogo, Jesus acompanha as pessoas na sua própria descoberta e pede licença para entrar na história de cada um.
O homem é a primeira terra de missão, Da missão do Verbo, que todos os dias põe a sua mesa na nossa casa, com gestos que nós compreendemos, com sinais que fazem parte do nosso quotidiano: o pão e o vinho, a água e a luz, o amor e a festa, a dor e o trabalho, a ternura e a compaixão.
“Já não sois estrangeiros nem imigrantes, mas concidadãos dos santos e membros da casa de Deus, edificados sobre os alicerces dos Apóstolos e dos Profetas, tendo por pedra angular o próprio Cristo Jesus. È nele que toda a construção, bem ajustada, cresce para formar um templo santo no Senhor. È nele que também vós sois integrados na construção, para formardes uma habitação de Deus, pelo Espírito”  ( Ef 2, 19-20)
2. Chaves de leitura da missão como contemplação 
2.1. A missão como louvor
Bendito seja Deus, Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo que do alto do céu nos abençoou com toda a espécie de bênçãos espirituais em Cristo. Foi assim que Ele nos encolheu em Cristo antes da criação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis na sua presença no amor. Predestinou-nos para sermos adoptados como seus filhos por meio de Jesus Cristo, de acordo com o beneplácito da sua vontade, para que seja prestado louvor à glória da sua graça que gratuitamente derramou sobre nós no seu Filho bem amado. ( Ef. 1, 3-149
´´É pelo louvor que S.Paulo  nos introduz no coração da missão. Quase todas as suas cartas começam por uma confissão de louvor. Particularmente a Carta aos Efésios e a Carta aos Filipenses são dos textos mais belos de louvor e acção de graças de toda a Bíblia. O apóstolo confessa-se maravilhado por tudo o que Deus lhe revelou e por tudo o que a sua graça opera no meio do seu povo. Ser escolhido para anunciar o reino de Deus é uma graça tão grande que só a cantar se pode falar dela. Não sei se em alguma outra passagem, S.Paulo fala com tanto entusiasmo de Deus  como nesta introdução da Carta a aos Efésios. O louvor e a acção de graças, um coração radiante por essa novidade e por esta bênção de Deus que nos atinge no mais profundo do nosso ser , são de facto a primeira palavra do missionário. A palavra de um apaixonado. Não se pode separar o anúncio do louvor pois há coisas que só podem ser anunciadas a louvar e a bendizer, com o coração em festa.
A contemplação é a maneira mais profunda de conhecer a Deus: é um conhecimento que  não precisa da mediação dos nossos conceitos. Contemplar é estar diante de Deus como se está diante de uma flor ou diante do mar ou diante do amor. Todo o raciocínio afasta do mistério, fica à superfície. Se a contemplação é a maneira mais profunda de conhecer e “ver” a Deus, o louvor é a linguagem mais apropriada para o anunciar. Diante de uma flor não dizemos o que ela é mas o encanto que tem O louvor tem algo da eternidade de Deus: ele leva-nos `a manhã da criação onde a mão de Deus tocou o mundo dos homens. È esse toque de Deus que emerge quando o nosso coração mergulha nessa fonte. Não é por acaso que  o céu nos é apresentado através da imagem do canto e do louvor : "o céu  e a terra proclamam a vossa glória: hossana nas alturas!”
Não se pode ser porta-voz de Deus sem estar apaixonado por Ele. sem o calor e a alegria de um coração surpreendido e maravilhado pelo dom de Deus.
A carta aos Filipenses, é a carta da alegria da missão. Diz Amêdeo Brunot, que depois da majestade basilical da Carta aos  Romanos , na Carta aos  Filipenses temos a impressão  de entrar numa capela familiar, no cimo de um  monte, onde chega toda a alegria e toda a magia  da paisagem.
Depois de ter passado mais de meio século de vida, Paulo torna-nos confidentes da felicidade que sente por estar ao serviço do anúncio do Evangelho. Num tempo em que tantos se cansam e se desiludem neste ministério difícil do anúncio do Evangelho, esta carta é um estímulo para nos ajudar a descobrir da bênção dos pés que, pelos montes anunciam a paz, como canta o profeta. A carta aos Filipenses é uma das mais belas cartas  de S.Paulo. Foi escrita no cárcere ( 1, 14-17)  “No meio das minha tribulações, exulto de alegria”- grita o apóstolo. Toda a carta desde o princípio ao fim é um hino à alegria.
A “marca do Espírito Santo em nós, diz  S.Paulo , é  a nossa capacidade de louvar e bendizer . “Fostes marcados com o selo do Espírito Santo, o qual é penhor da nossa herança, enquanto esperamos a completa redenção daqueles que Deus adquiriu para louvor da sua glória"  (Ef. 1, 13-14) O louvor é de facto a primeira palavra que o missionário deve aprender. Foi o primeiro anúncio dos apóstolos, no dia do Pentecostes: “Ouvimo-los narrar nas nossas línguas as maravilhas de Deus"
Recuperar a mística da missão é voltar ao cenáculo para acolher o dom do Espírito Santo, aprender a louvar e a bendizer, pois é  no cenáculo que nasce a missão.

2.2. A Missão como dom do Espírito Santo

“Saulo, meu irmão, foi o Senhor que me enviou, esse Jesus que te apareceu no caminho em que vinhas, para recobrares a vista e ficares cheio do Espírito Santo. Nesse instante, caíram-lhe dos olhos uma espécie de escamas e recuperou a vista. Depois, levantou-se e recebeu o Baptismo”  (Act 9, 17)
Tudo começou com este Baptismo em que o Espírito Santo marcou encontro com S.Paulo. É a presença deste Espírito que o levará a tocar a fímbria do mistério da missão "A nós, Deus revelou-nos o seu mistério por meio do seu Espírito. Pois o Espírito tudo penetra, até as profundidades de Deus". ( 1 Cor. 2, 10-13)
S.Paulo diz-nos que só o Espírito Santo pode penetrar nos segredos de Deus : é necessária a acção do Espírito Santo para transpor esse limiar. Esse limar é o limiar que nos abre para a missão. Acolhendo o Espírito Santo, o homem torna-se o confidente de Deus, o seu profeta, a voz de Deus na terra dos homens.
Paulo vai mais longe e diz mesmo o que nos distingue é a marca do Espírito Santo em nós. È o Espírito que nos marca com o seu selo e infunde no nosso coração a paixão pela missão. Sem ele, nós seríamos uns intrusos em terra alheia, “Fostes marcados com o selo do Espírito Santo, o qual é penhor da nossa herança, enquanto esperamos a completa redenção daqueles que Deus adquiriu para a sua glória” ( Ef. 1, 13-14). Nós somos a carta que Deus escreveu aos homens para falar com eles. “ Porventura não é a Igreja criada pelos apóstolos a nossa carta de recomendação, escrita pelo Espírito em caracteres da nova Aliança não em tábuas de pedra mas no fundo dos nossos corações? ( 2 Cor. 3, 3) È  uma imagem muito bela: quando nós que anunciamos o Evangelho, somos uma carta que o Espírito Santo escreveu e o Pai envia aos homens. 
Esta actividade do Espírito no coração de Paulo  prolongar-se-á por toda a sua vida : ela é uma fonte onde todos os dias ele vai beber. No fim da sua carreira ele poderá dizer: “  Com certeza que ouvistes falar da graça de Deus  que me foi dada para vosso benefício afim de realizar o seu plano: que por revelação me foi dado conhecer o mistério tal como antes o descrevi resumidamente. Lendo-o podeis fazer uma ideia da compreensão que tenho do mistério de Cristo que não foi dado a conhecer aos filhos dos homens em gerações passadas, como agora foi revelado aos seus santos, Apóstolos e Profetas, no Espírito” ( Ef. 3, 4-5).
Este é o ponto de partida da vocação missionária de todo o cristão: com o dom do Espírito Santo , que é derramado nos nossos corações pelo Baptismo, nós ficamos marcados com a assinatura, o selo do amor de Deus “ O amor de Deus  foi derramado nos nossos corações  pelo Espírito Santo que nos foi dado”.(Rom 5,5) È esta a senha  que nos  permite entrar na missão, ou seja, na terra de Deus . È a ultrapassagem desta fronteira que nos embarca na missão de Deus.
Esta presença do Espírito Santo na alma do Apóstolo não é uma página que se assinou ou uma credencial que levamos no bolso. Ela é um roteiro que vai à nossa frente a marcar o itinerário da missão que temos de percorrer.
Foi na comunidade de Antioquia, onde Paulo tinha passado um ano a evangelizar com Barnabé, que o Espírito Santo veio ter com a comunidade a indicar-lhe o itinerário de Paulo e Barnabé: “ Estando eles a celebrar o culto em honra do Senhor e a jejuar, disse-lhes o Espírito Santo: Separai Barnabé e Paulo para o trabalho a que os chamei”. Então, depois de terem jejuado e orado, impuseram-lhes as mãos e deixaram-nos partir” ( Act 13, 2-4)
Foi o Espírito Santo que escolheu os pioneiros da evangelização da Ásia Menor. E o Espírito Santo partiu com eles para a terra da missão. De facto, pouco depois, quando Paulo encontrou na ilha de Chipre o mago Elymas, dizem os Actos dos  Apóstolo, Paulo dirige-se a ele “cheio do Espírito Santo”. Na segunda viagem o papel do Espírito Santo no itinerário da missão de Paulo, será ainda mais interventivo.  Com Silas, Paulo visita  de novo algumas cidades  que tinha encontrado na primeira viagem, nomeadamente Derbes e Listra, depois resolve ir para a “Ásia”, ou seja, para a região  de Éfeso, mas o Espírito  impede-o; vai então para o norte, a Frigia  e o país dos Gálatas , querem continuara viagem  para a Bitínia, mas o Espírito mais uma vez  não lho permite (Act 16, 4) .
Depois destas frustrações, Paulo não volta para trás mas continua a caminhar, a procurar. Então Paulo chega a Tróade. Tróade era uma localidade perto da antiga Tróia, celebrada pelos poetas. Era aí que o esperava o Macedónio. O Espírito queria que ele chegasse ao ponto donde pudesse ver esse macedónio que o chamava. A Macedónia ficava fora da Ásia Menor: era a primeira província romana na Europa. Era portanto uma cultura diferente da Ásia Menor: O macedónio era um apelo novo, o apelo de um mundo diferente e de uma nova cultura. Paulo tinha levado o cristianismo da cultura judaica para a cultura grega, agora tratava-se da passagem para a cultura romana  A voz do macedónio, mais que uma voz vinda de longe, é uma intuição interior, uma voz do Espírito dentro de nós. O apelo da missão sem fronteiras. Um apelo que só se chega a ouvir depois de muitas conversões e por vezes de muitas frustrações.
O macedónio representava uma cultura nova, a cultura europeia, que logo se anunciava de difícil evangelização. Era uma cultura que saberia defender-se, uma cultura superior. O macedónio de pé, na plenitude das suas forças e do seu orgulho, desafiava S.Paulo. Exactamente num momento em que tantos portais se fechavam e ele se sentia cansado e desanimado, de repente, surge-lhe um apelo para além de todos os seus projectos e de todas as suas forças, ele que até ali se limitara a andar de cidade em cidade por espaços do seu à vontade.
Podemos imaginar que e Paulo tenha de repente compreendido o sentido das suas frustrações e do seu entusiasmo sem resposta. O Senhor estava-o preparando e amadurecendo para um novo apelo, o apelo da Europa, ou seja, da missão sem fronteiras.
Os caminhos da missão estão muitas vezes ligados a intuições deste género: quando nós parecemos inúteis e estamos cansados pelas nossas frustrações, é então que o Senhor bate à nossa porta a dizer que precisa de nós.
E no final da sua peregrinação, Paulo é levado para Jerusalém conduzido “prisioneiro do Espírito”. Ele o confessa em Éfeso aos presbíteros de Mileto: “ Agora, obedecendo ao Espírito vou a Jerusalém, sem saber o que  lá me espera , só sei que de cidade em cidade, o Espírito Santo me avisa  que me aguardam cadeias e tribulações” ( Act 20, 22-23
Mas para lá desta viagem geográfica fala sobretudo de uma outra viagem: acompanhado do Espírito Santo: a viagem ao interior do mistério da missão. O Espírito Santo foi para ele  a mão que o levou  a penetrar no segredo da missão. Aos Gálatas S.Paulo confessa: “ Quando aprouve a Deus – que me segregou desde o seio de minha mãe  e me chamou pela sua graça – revelar o seu Filho em mim, para que eu o anuncie  como Evangelho entre os gentios ,  não fui  consultar  criatura humana alguma , nem subi a Jerusalém  para ir ter com os que  se haviam tornado apóstolos antes de mim “  È o Espírito Santo e que nos comunica a vida de Deus é o tema  de todo o capítulo oitavo da Carta aos Romanos. È o Espírito que nos faz filhos de Deus. A missão como filiação de Deus ou santidade é mergulhar na fonte da missão. “Aqueles que são filhos de Deus são conduzidos pelo Espírito de Deus; vós não recebestes um espírito  que vos faz escravos , mas um Espírito que faz de vós filhos adoptivos  pelo qual gritamos : Abba Pai. Este mesmo Espírito atesta  ao nosso espírito que somos filhos de Deus  e portanto herdeiros  de Deus e co-herdeiros de Cristo” ( Rom. 8, 14-17; Gal 4, 5-7).
O Vaticano II  consagrou a vocação de todos os cristãos à perfeição da santidade, ou seja, à perfeição do amor  e da comunhão com Deus.
Todos na Igreja, quer pertençam à hierarquia quer façam parte da grei, são chamados à santidade, segundo a palavra do Apóstolo: “Esta é a vontade de Deus, a vossa santificação “ ( I res. 4, 3, Ef. 1, 4). A santidade deixou de ser monopólio dos ditos “estados de perfeição” ou dos santos em vias de canonização. A santidade na sua perfeição é a vocação de todo o cristão. Esta é verdadeiramente a “Jóia da Coroa” do Concílio. Ela mudou completamente o olhar sobre a vida cristã “Sede perfeitos como o vosso Pai do céu é perfeito” “ O Espírito Santo nos escolheu em Cristo, antes da criação do mundo, para sermos santos e sem defeito no amor “ ( Ef 1, 4)
È pois, bem claro, diz a Lúmen Gentium no nº 40,  que todos os fiéis , seja qual for o seu estado  ou classe, são chamados  à plenitude  da vida cristã e à perfeição da caridade, santidade esta que promove , mesmo na sociedade terrena, um teor de vida mais humano” ( LG  40) O que significa que todo o cristão é terra de missão.
No Baptismo, todos recebemos o Espírito Santo em plenitude, tanto o leigo, como o padre, o bispo ou o Papa. Todos são chamados à perfeição da santidade. Não se recebe o Espírito Santo, mais ou menos; a conta gotas, aos bocadinhos, por esmola.  O Espírito Santo entrega-se todo: Ele é o grande dom do Pai. Uma hóstia não está mais ou menos consagrada, Cristo não está mais numa partícula que noutra. Está todo em cada uma. Mas os efeitos da comunhão não são iguais em todos. O Espírito Santo está todo em cada cristão, como Cristo está todo em cada hóstia consagrada, seja ela grande ou pequena. Acolher o Espirito na sua plenitude é embarcar no projecto missionário do Pai.
Um dos mais belos hinos de S.Paulo é aquela viagem que Cristo faz do seio do Pai até à terra dos homens, conforme S.Paulo o explica aos Filipenses.
Tende em vós os mesmos sentimentos que havia em Cristo Jesus. Ele que era de condição divina, não considerou como uma usurpação ser igual a Deus; mas esvaziou-se a si mesmo, tomando a condição de servo. Tornando-se semelhante aos homens e ao manifestar-se, sendo identificado como homem, rebaixou-se a si mesmo , tornando-se  obediente até à morte  e morte da cruz. Por isso Deus O exaltou e O elevou acima de tudo “ ( Fil. 2, 5-11) Esta kenose leva-nos ao coração da missão. Acolher a missão do Pai é entregar-se a si mesmo, “descalçar-se”, perder as suas defesas, colocar-se em estado líquido, de pôr as armas,  sair de si, para se deixar acolher por outra terra onde o Espírito já se encontra e nos espera. Este despojamento é necessário para captar os caminhos do Espírito já presente nos espaços da missão. È Ele que precede o missionário e lhe indica os caminhos da missão. O missionário é assim o primeiro a ser evangelizado no seio daquele povo. O Espírito está presente não só na história que o missionário vai encontrar, mas também na cultura e até nas suas crenças religiosas, como também na sua vida quotidiana. È um despojamento que permite ao missionário discernir e descobrir um novo rosto de Cristo incarnado naquele povo, vivendo a  sua história e os seus valores. A missão é sobretudo ajudar o povo a fazer esta descoberta. È uma Kenose,  feita de disponibilidade total, de abertura ao outro, de escuta, de silêncio, de contemplação. A missão é mais paixão que acção. Trata-se de se deixar moldar pela missão que  se recebe, de se tornar permeável ao encontro com o outro. È isso que lhe permite ultrapassar todas as barreiras culturais e étnicas para poder acolher o dom do outro. 
 2.3.  A escuta orante da Palavra/  A Palavra confidência de Deus
Alegro-me nos sofrimentos que suporto por vós e completo na minha carne o que falta às tribulações de Cristo , pelo seu Corpo que  é a Igreja.  Foi dela que eu me tornei servidor , segundo a missão que Deus me confiou para vosso benefício: levar à plena realização a Palavra de Deus, o mistério escondido  ao longo das gerações  e que agora Deus manifestou aos seu santos ( Col. 1. 24-25)"
No prólogo do seu evangelho, S.João situa o Verbo, a palavra de Deus, como fonte da missão. E leva-nos em peregrinação até essa fonte.  Cristo é o Verbo de Deus que desde o seio da eternidade, progressivamente vai entrando na história humana. Toda a realidade criada é fruto dessa Palavra incarnada. A missão aparece-nos na sua origem, abrangendo todo o universo, a começar pelo universo da criação. A Palavra penetra em toda a historia humana e em todas as realidades criadas, oferecendo-lhe a abundância e a plenitude dom de Deus. “Da sua plenitude, todos nós recebemos”. Este Logos de Deus abraça a história humana e faz-se parte integrante dessa história: “fez-se carne e habitou entre nós”.
Ao longo do Evangelho de João são numerosos os textos que falam da relação entre o Pai e o Filho; A missão do Filho é situada no interior da filiação divina. Ela comunica o mais profundo do mistério do Pai. A missão é da ordem da filiação; é dom da vida do Pai., como S.Paulo já o tinha dito. Esta filiação vai fecundar toda a história humana; João situa-a no mais profundo das aspirações do homem. Os símbolos do pão e da água, da luz e da vida, que identificam as mais profundas aspirações da pessoa, vai João identificá-las com o próprio Filho, enviado do Pai. “Eu sou o pão que mata toda a fome, a água viva que mata toda a sede, a luz que ilumina todo o homem que vem a este mundo, a ressurreição e a vida”. Assim, a missão, se por um lado está situada no coração da Trindade de Deus , por outro,   tem o seu termo no coração do homem. O Evangelho de João vai ao fundo dos símbolos através dos quais passa a teologia do Reino de Deus; é um Evangelho para ser contemplado, é uma missão para ser rezada.
S.Paulo confessa aos Coríntios: : “ A minha palavra e a minha pregação não se apoiam em discursos persuasivos da sabedoria humana, mas numa manifestação do poder do Espírito, para que a vossa fé não esteja alicerçada na sabedoria humana, mas no poder de Deus  “ ( 1 Cor, 2, 4-5).
S.Paulo  utilizou todas as tecnologias de ponta da comunicação do seu tempo para o anúncio do Evangelho. Basta recordar as viagens e a mobilidade  que farão dele uma cátedra itinerante  que vai ao encontro das pessoas, as cartas que eram uma técnica  avançada de difícil  manejo que correspondia à nossa Internet, os areópagos e praças públicas a anunciarem os modernos meios audiovisuais, o diálogo  nas suas expressão de encontro com as culturas e com as religiões, etc.
Mas efectivamente elas são apenas um instrumento ao serviço da palavra. No segundo capítulo da 1ª Carta aos Coríntios ele afirma que “quando fui ter convosco não me apresentei com o prestígio da linguagem ou da sabedoria para vos anunciar o mistério de Deus. Julguei não saber outra coisa entre vós a não ser Jesus Cristo e este crucificado ( 1 Cor. 2,) ....Ensinamos a sabedoria de Deus, mistério que permanece oculto e que Deus antes dos séculos predestinou para nossa glória…. A nós , porém Deus o revelou  por meio do Espírito. Pois o Espírito tudo penetra até as profundidades de Deus …… Dos dons de Deus não falamos com palavras da sabedoria humana mas com as que o Espírito inspira"
A Palavra de Deus exige uma escuta  orante que nos conduz ao mistério da missão. Nós temos muito a tendência para derivarmos a nossa teologia para a devoção, para as palavras da sabedoria humana. A perda do contacto profundo com a Palavra de Deus continua a ser talvez o nosso maior handicap. .Já Zade  Smith, a escritora britânica  de origem oriental confessava ao Expresso: “Eu cresci numa família sem filiação religiosa. Quando se não tem um grande livro, é natural olhar para uma data de pequenos livros” Nós fizemos da nossa espiritualidade uma  espiritualidade de pequenos livros.
Como nos ensina Armindo Vaz ( A arte de ler a Bíblia, Ed Carmelo),  nos primeiros séculos da Igreja a espiritualidade cristã era bíblica. Depois, pouco a pouco, foi surgindo a necessidade de explicar a Bíblia e a explicação acabou por substituir a Bíblia. A Bíblia passou para as escolas: e assim começaram a distinguir-se a lectio divina e a lectio escolástica e dois modelos de teologia, a teologia monástica e a teologia escolástica. A teologia monástica era a teologia dos monges, um desenvolvimento da lectio divina, a partir da Sagrada Escritura a teologia escolástica era a teologia das universidades, a partir da filosofia, da disputatio Numa pontificava o Deus de Abraão, de Issac e  e de Jacob, o Deus da história da salvação,  e na outra o Deus dos  filósofos, de Aristóteles e Platão, o Deus das escolas....Para uns o que provava a existência de Deus era a história  da salvação, para outros era a filosofia, a via das cinco causas de que falava Aristóteles  e  que a Escolástica assumiu. Deus foi passando da Bíblia para o o foro da filosofia. Uma tinha a sua expressão na liturgia, a outra na escola, uma era de toda a comunidade, a outra dos peritos, uma voltada para a contemplação, a outra debruçada sobre a análise e o estudo, uma era  espiritual, afectiva, a outra intelectual e abstrata.
A partir do século XII a teologia escolástica começou a dominar a teologia bíblica: o livro a dominar sobre a Palavra. Foi o predomínio da erudição clerical sobre a mística. Desde então no Ocidente prevaleceu esse modelo teológico. E foi então que começou o desterro da Palavra na vida da Igreja e dos cristãos. A leitura bíblica foi dominada pela leitura dos argumentos dos exegetas. O povo afastado da Bíblia, voltou-se para os santos com quem se identificava: as catedrais da Idade Média com os seus vitrais, as suas procissões, os seus santos as suas iluminuras, tornaram-se a Bíblia do povo. Assim nasceu a espiritualidade devocional, santoral. O primado da palavra de Deus foi substituído pelas devoções .A devotio moderna, fundamentalmente subjectiva, acabou por se impor na Igreja. A espiritualidade divorciou-se da Bíblia.
A língua da Bíblia era o latim, a língua dos eruditos, dos filósofos e teólogos.. O Papa Inocêncio III em 1199 chegou a proibir a tradução da Bíblia para as línguas vulgares ou “romances” falada pelo povo: a Bíblia não devia ser acessível aos ignorantes, aos bárbaros. A exegese da Igreja foi substituída pela exegese da Sorbona a teologia de joelhos pela teologia da escola. A Bíblia tornou-se  fonte de heresias  e pretexto para muitas bíblias irem desaguar no Tribunal da Inquisição. Santa Teresinha do Menino Jesus nunca teve acesso a um texto integral do Antigo Testamento. Aquando da Reforma protestante os protestantes entrincheiraram-se  na Bíblia, os católicos refugiaram-se na Tradição e nos sacramentos. E como a Eucaristia incluía duas leituras da Escritura, bastava chegar ao Credo ou ao ofertório para a missa ser válida, pois as leituras bíblicas eram um elemento secundário da celebração eucarística.
De resto, elas eram em latim e ninguém as entendia. No ritual dos sacramentos deixou de haver espaço para palavra de Deus. Com o decorrer do tempo, a Igreja Católica, preocupada em defender a fé tradicional do povo, ameaçada por uma livre interpretação bíblica, deu prioridade à catequese das crianças. A Bíblia era o suporte do catecismo mas o seu acesso directo estava praticamente reservada ao clero. Como diz D.Marcelino “ O estudo da Sagrada Escritura foi deficiente, por haver mais preocupação com os problemas exegéticos que com a riqueza espiritual inesgotável da Palavra de Deus”.
Foi nesta espiritualidade que nós fomos educados e com ela ficamos marcados. È evidente que para penetrarmos no mistério da Missão temos que voltar à Palavra de Deus, como confidência da sua missão e do seu amor por todo o género humano. A Palavra  de Deus é a confidência do seu amor e dos seus caminhos no mundo dos homens . È uma palavra para se rezar. Ele leva-nos directamente ao mistério da missão.

 
Era uma vez uma boneca diferente de todas as outras. Há bonecas de plástico, como há bonecas de neve. Esta não era de neve nem de plástico era de sal.
O sal é um produto que existe sobretudo no mar. Por isso a água do amor é salgada.
Mas esta boneca de sal não era como as bonecas de neve que ficam paradas e mortas de frio no jardim. Esta era uma boneca viva, que sabia pensar e gostava de passear. Muitas vezes ouvira falar do mar e quando lhe falavam do mar, toda ela estremecia. Diziam-lhe que o mar era azul, imenso, cheio de ondas e gaivotas. E nem ela sabia porquê, um desejo irresistível de ver o mar se foi apoderando dela.: Esse desejo tornou-se ainda mais irresistível quando lhe disseram que ela tinha vindo do mar. o sal de que ela era feita era sal do mar.
E um belo dia, resolveu pôr-se a caminho, à procura do mar, que ela não conhecia .Encontrou um grande rio. Também ele era azul, mas não tinha ondas nem gaivotas. Não podia ser o mar.
Sentiu-se atraída por ele, mas algo lhe dizia que ele não podia ser o mar. Perguntou ao rio para onde é que ele ia e o rio disse-lhe que ia para o mar. Aí sim, estremeceu toda. E logo lhe pediu licença para o acompanhar até ao mar. O rio sabia onde ficava o mar e seria uma boa companhia para a viagem. E lá foi seguindo, sempre ao lado do rio, numa viagem que parecia não ter fim. Como o mar ficava longe!
Andou, andou até que chegaram a uma grande praia, cheia de areia e de sol. Lá adiante logo o reconheceu: era o mar. Lá estavam as ondas e as gaivotas. Azul como o céu, imenso como céu,  as ondas brancas logo lhe começaram a acenar e a fazer sinal. Sentiu-se reconhecida. Não havia dúvidas, era o seu mar. Todas a sondas cantavam e dançavam de alegria:
- Quem és tu? Perguntou como quem não desconfiava de nada
-Sou o mar! Responderam as ondas doidas de alegria.
- Como posso chegar a ti?
- Avança sem medo, toca-me.
Pequenina como era, tocar aquele mar imenso parecia-lhe um milagre. Mas algo lhe dizia que ela fazia parte daquele mar e daquele azul.
Timidamente meteu um pé na água. E experimentou uma sensação estranha, dolorosa e feliz ao mesmo tempo.
Pouco depois, ao voltar atrás para a areia seca da praia, sobressaltada, deu-se conta de que os dedos dos pés que tinham tocado na água, tinham desaparecido. O mar tinha-os derretido.
E de repente, ficou com medo do mar: ter-se-ia enganado? Mas algo lhe dizia para experimentar de novo. Era uma atracção quase irresistível. E a boneca voltou a tocar na água. E então sentiu que primeiro os pés, depois, as pernas, depois o corpo todo ia desaparecendo no mar, ma suma felicidade imensa a invadia toda E foi avançando lentamente até que todo os eu corpo se transformou em mar.
Na praia brincavam algumas crianças. Uma delas gritou:
- Ò mar, quem és tu?
Então a boneca de sal, toda feita mar, gritou com todas as ondas: - O mar sou eu!
 
É uma parábola de Pedro Gaivota que eu aplicaria ao mistério da missão Em cada um de nós existe essa saudade  que vem das fontes da nossa fé. Nós somos filhos o Mar. Deus  é a fonte onde nasce a nossa vocação missionária. Para ser missionário é preciso que a nossa a imagem, o boneco que nós somos, se transforme naquele que lhe deu o ser. A nossa história pequenina faz parte de um amor tão imenso como o amor do Pai do céu: nós somos feitos para o mar.
Retirado do Site dos Franciscanos Capuchinhos em 18.04.2017.

terça-feira, 4 de abril de 2017


 
“Lázaro, vem para fora!”

Os relatos evangélicos do 3º., 4º. e 5º. domingo da Quaresma do Ciclo A, tomados do evangelista João, apresentam Jesus como Fonte de Água viva (samaritana), Luz do mundo (cego de nascença) e Vida (ressurreição de Lázaro). Três símbolos de nossas necessidades humanas mais fortes (água, luz e vida) e que só o encontro com Jesus pode preenchê-las.
A Quaresma termina com um chamado à vida. Não qualquer vida, mas a Vida verdadeira, a Vida que deseja ser despertada para romper com tudo aquilo que a limita. Por isso, o relato da ressurreição de Lázaro é toda uma catequese sobre o encontro com Aquele que é Vida e que é fonte de vida em crescente amplitude. Jesus não vem prolongar a vida biológica, vem comunicar a Vida de Deus que Ele mesmo possui pelo Espírito e da qual pode dispor.
Em Jesus acontece algo totalmente novo; Ele traz uma nova maneira de viver e de comunicar vida que não cabe nos nossos esquemas. É justamente isso o que mais atrai em sua pessoa. Quem entra em comunhão de vida com Ele, conhece uma vida diferente, de qualidade nova, expansiva...

Nesse sentido, a experiência do Seguimento de Jesus é uma verdadeira “escola de vida”, cujo aprendi-zado nos leva ao âmago do nosso ser, para enraizar nossa vida no coração da Trindade, dele haurir a seiva da vida divina e deixar-nos plenificar pela graça transbordante de Deus.

Nada mais contrário ao espírito do Evangelho que a vida instalada e uma existência estabilizada de uma vez para sempre, tendo pontos de referência fixos, definitivos, tranquilizadores...

Para o evangelista João, a “vida” é uma totalidade, ou seja, a vida presente, a vida atual, possui tal plenitude que, com toda razão, podemos chamá-la de “vida eterna”; uma vida com tal força e tão sem limites, que nem a morte mesma terá poder sobre ela. A “vida eterna”, então, não é um prolongamento ao infinito de nossa vida biológica. É a dimensão inesgotável e decisiva de nossa existência. Ela torna-se “eterna” desde já.

Precisamos adquirir uma consciência mais profunda da vida do Espírito, perceber as pulsações desta vida eterna que está em nós, do mesmo modo que, prestando atenção, percebemos as batidas do coração de toda a criação. Nesse sentido, a vida tem a dimensão do milagre e até na morte anuncia o início de algo novo; ela carrega no seu interior o destino da ressurreição. “Minha vida é uma sucessão de milagres interiores” (Etty Hillesum).

Vida plena prometida por Jesus: “Eu vim para que tenham a vida e vida em abundância” (Jo 10,10)

Nem sempre sabemos viver de maneira intensa: conformamo-nos com uma vida estreita, estéril, fechada ao novo, carregada de “murmurações”, atada com faixas. O dinamismo do Seguimento de Jesus, no entanto,  é gerar vida, possibilitar que o(a) discípulo(a) viva a partir da verdade mais profunda de si mesmo; ou seja, viver a partir do coração, do “ser profundo”.

A imagem de Jesus, presente junto às vidas feridas e bloqueadas, nos ajuda a conhecer nossa própria interioridade e desperta nossa vida, arrancando-a de seu fatal “ponto morto”, de seus limites estreitos e constituindo-a como vida expansiva em direção a novos horizontes.

O seguimento proporciona vigor inesgotável, nossa vida se destrava e torna-se potencial de inovação criadora, expressão permanente de liberdade, consciência, amor, arte, alegria, compaixão.... É vida em movimento, gesto de ir além de nós mesmos; vida fecunda, potencial humano. Vida com fome e sede de significado, que busca o sentido... Vida que é encontro, interação, comunhão, solidariedade. Vida que é seduzida pelo amor, pela ternura. Vida que desperta o olhar para o vasto mundo. Vida que é voz, é canto, é dança, é festa, é convocação...

“Lázaro” representa a humanidade ferida e amada, com dimensões de sua vida necrosadas, amarradas, presas nos sepulcros. Nós mesmos podemos perceber parcelas de nossa vida paralisadas e atrofiadas.

Mas Lázaro, que está presente em cada um, não está morto, apenas dorme. As fontes da alegria, as fontes da criatividade e da confiança, as fontes do agradecimento e das bem-aventuranças... não estão mortas; estão adormecidas e necessitadas de que alguém tire os escombros e afaste a pedra que bloqueia o impulso da vida. E cabe a nós, como seguidores(as) de Jesus, despertá-las com a voz, com os gestos, com o olhar, com as mãos.

O primeiro passo é remover a pedra. Quem jaz atrás da pedra está fechado a qualquer tipo de relação.

Quando a pedra é removida, Jesus ora e diz: “Lázaro, vem para fora!”. Chama seu amigo, e suas palavras de amizade e amor ressoam dentro da sepultura para levantá-lo, despertá-lo e insistir para sair por seus próprios pés. A palavra de amizade de Jesus o alcança inclusive naquilo que está necrosado em Lázaro.

“Lázaro vem para fora”: “Ele tinha as mãos e os pés amarrados com faixas e um pano em volta do rosto”. Ainda não está livre; está preso pelas faixas. Algumas ligaduras podem ser bloqueios internos, dependências, medos, inseguranças, carências...

Diante do túmulo, Jesus mobiliza a todos: para ressuscitar a Lázaro pede a uns que afastem a pedra, a outros que estendam as mãos e desatem as faixas, a outros que o ajudem a pôr-se de pé.

Como podemos crescer em uma corresponsabilidade que nos faça a todos e cada um extrair o melhor de nós mesmos para contribuir com a vida, para que entre luz em nossas relações humanas, para construir entre todos os seus seguidores que caminham, livres das amarras, ao ritmo do Espírito?

“Lázaro, vem para fora!”. Não é este o grito diário de Deus em nossas vidas? Este apelo “vem para fora” é para todos. Todos somos portadores de um sepulcro que nos fecha, nos isola e nos asfixia, privando-nos de nossa liberdade. É preciso dar asas à vida, soltá-la em direção à imensidão do universo.

“Lázaro, vem para fora!” Esta palavra é preciso dizê-la desde agora, com Jesus. Venhamos todos para fora, de maneira que não vivamos mais de morte, que não permaneçamos na letargia, envolvidos em sudários e faixas, compactuando com a violência e a injustiça, dando cobertura àqueles que matam.

Temos de sair de um mundo no qual, de um modo ou de outro, nos habituamos com a morte e nos sentimos impotentes: “Senhor, já cheira mal: é o quarto dia” 

Cada dia Deus nos tira do sepulcro e nos devolve a vida sempre enriquecida e iluminada. É um milagre que cada dia possamos amanhecer com vida. Ninguém vive só de momentos extraordinários e de grandes festas; o que mais influi em nossas vidas é a alegria de cada dia, a festa de cada dia, a vida de cada dia, o amor de cada dia, a esperança de cada dia.

Jesus nos oferece a oportunidade de deixar-nos amar pelo Deus da vida, que gera vida, proximidade e abertura, fraternidade profunda e sincera. Podemos fazer isso porque carregamos ricas potencialidades de vida dentro de nós e que, muitas vezes, permanecem atadas, impedindo-nos viver a comunhão e a convivência com os outros. Vir para fora do túmulo significa viver para a vida, na justiça e solidariedade, condenando toda violência que atrofia a vida.

A comunhão de vida com Cristo nos faz ter um “caso de amor com a vida”.

Texto bíblico: Jo 11,1-45

Na oração: “Vem para fora!”, não te feches em ti mesmo, sai de tudo o que há de morte em tua vida; sai de teu individualismo, de teu orgulho, de tua indiferença! Sai de tua insensibilidade à dor dos outros! sai da vulgaridade e superficialidade  de tua vida e vive a elegância da santidade!

Pe. Adroaldo Palaoro sj

Itaici-SP