domingo, 21 de fevereiro de 2021

Viagem de regresso a Deus


                                   SANTA MISSA, BÊNÇÃO E IMPOSIÇÃO DAS CINZAS

HOMILIA DO PAPA FRANCISCO

Basílica de São Pedro
Quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Principiamos o caminho da Quaresma, que se abre com as palavras do profeta Joel indicando-nos a direção a tomar. Trata-se dum convite que brota do coração de Deus, suplicando-nos de braços abertos e olhos cheios de nostalgia: «Convertei-vos a Mim de todo o vosso coração» (Jl 2, 12). Convertei-vos a Mim. A Quaresma é uma viagem de regresso a Deus. Quantas vezes, atarefados ou indiferentes, Lhe dissemos: «Senhor, espera! Virei encontrar-Vos mais tarde... Hoje não posso, mas amanhã começarei a rezar e a fazer algo pelos outros». E assim dia após dia… Agora Deus lança um apelo ao nosso coração. Na vida, sempre teremos coisas a fazer e desculpas a apresentar, mas, irmãos e irmãs, hoje é o tempo de regressar a Deus.

Convertei-vos a Mim – diz Ele – de todo o vosso coração. A Quaresma é uma viagem que envolve toda a nossa vida, tudo de nós mesmos. É o tempo para verificar as estradas que estamos a percorrer, para encontrar o caminho que nos leva de volta a casa, para redescobrir o vínculo fundamental com Deus, do qual tudo depende. A Quaresma não é compor um ramalhete espiritual; é discernir para onde está orientado o coração. Aqui está o centro da Quaresma: para onde está orientado o meu coração? Tentemos saber: Para onde me leva o «navegador» da minha vida, para Deus ou para mim mesmo? Vivo para agradar ao Senhor, ou para ser notado, louvado, preferido, no primeiro lugar e assim por diante? Tenho um coração «dançarino» que dá um passo para a frente e outro para trás, amando ora o Senhor ora o mundo, ou um coração firme em Deus? Sinto-me bem com as minhas hipocrisias ou luto para libertar o coração da simulação e das falsidades que o têm prisioneiro?

A viagem da Quaresma é um êxodo: é um êxodo da escravidão para a liberdade. São quarenta dias que recordam os quarenta anos em que o povo de Deus caminhou pelo deserto para voltar à terra de origem. Mas, como foi difícil deixar o Egito! Mais difícil do que deixar a terra foi tirar o Egito do coração do povo de Deus, aquele Egito que traziam dentro… É muito difícil deixar o Egito! Ao longo do caminho, nos seus lamentos, sempre se sentiam tentados pelas cebolas, tentados a voltar para trás, presos às memórias do passado, a qualquer ídolo. O mesmo se passa connosco: a viagem de regresso a Deus vê-se dificultada pelos nossos apegos doentios, impedida pelos laços sedutores dos vícios, pelas falsas seguranças do dinheiro e da ostentação, pela lamúria que paralisa. Para caminhar, é preciso desmascarar estas ilusões.

Interroguemo-nos então: Como avançar no caminho para Deus? Ajudam-nos as viagens de regresso narradas pela Palavra de Deus.

Olhamos para o filho pródigo e compreendemos que é tempo também para nós de regressar ao Pai. Como aquele filho, também nós esquecemos o ar de casa, delapidamos bens preciosos em troca de coisas sem valor e ficamos com as mãos vazias e o coração insatisfeito. Caímos: somos filhos que caem continuamente, somos como criancinhas que tentam andar, mas estatelam-se no chão precisando uma vez e outra de ser levantadas pelo papá. É o perdão do Pai que sempre nos coloca de pé: o perdão de Deus, a Confissão, é o primeiro passo da nossa vigem de regresso. Ao dizer Confissão, recomendo aos confessores: Sede como o pai, não com o chicote, mas com o abraço.

Depois precisamos de regressar a Jesus, fazer como aquele leproso curado que voltou para Lhe agradecer. Curados foram dez, mas só ele foi também salvo, porque voltara para Jesus (cf. Lc 17, 12-19). Todos, todos nós temos enfermidades espirituais: sozinhos, não podemos curá-las; todos temos vícios arraigados: sozinhos, não podemos extirpá-los; todos temos medos que nos paralisam: sozinhos, não podemos vencê-los. Precisamos de imitar aquele leproso, que voltou para Jesus e se prostrou aos seus pés. Temos necessidade da cura de Jesus, precisamos de colocar diante d’Ele as nossas feridas e dizer-Lhe: «Jesus, estou aqui diante de Vós, com o meu pecado, com as minhas misérias. Vós sois o médico; podeis libertar-me. Curai o meu coração».

Mais ainda! A palavra de Deus pede-nos para regressar ao Pai, pede-nos para voltar a Jesus, e somos chamados também a regressar ao Espírito Santo. As cinzas na cabeça lembram-nos que somos pó e em pó nos havemos de tornar. Mas, sobre este pó que somos nós, Deus soprou o seu Espírito de vida. Então não podemos viver seguindo o pó, indo atrás de coisas que hoje existem e amanhã desaparecem. Voltemos ao Espírito, Dador de vida! Voltemos ao Fogo que faz ressurgir as nossas cinzas, àquele Fogo que nos ensina a amar. Continuaremos sempre a ser pó, mas – como diz um hino litúrgico – pó enamorado. Voltemos a rezar ao Espírito Santo, redescubramos o fogo do louvor, que queima as cinzas das lamúrias e da resignação.

Irmãos e irmãs, esta nossa viagem de regresso a Deus só é possível, porque houve a sua vinda até junto de nós. Caso contrário, não teria sido possível. Antes de irmos até Ele, desceu Ele até nós. Precedeu-nos, veio ao nosso encontro. Por nós, desceu até mais fundo de quanto pudéssemos imaginar: fez-Se pecado, fez-Se morte. Isto mesmo no-lo recordou São Paulo: «Aquele que não havia conhecido o pecado, Deus O fez pecado por nós» (2 Cor 5, 21). Para não nos deixar sozinhos e acompanhar-nos no caminho, Ele desceu dentro do nosso pecado e da nossa morte. Tocou o pecado, tocou a nossa morte. Então a nossa viagem é deixar-se tomar pela mão. O Pai que nos chama a voltar é Aquele que sai de casa e vem procurar-nos; o Senhor que nos cura é Aquele que Se deixou ferir na cruz; o Espírito que nos faz mudar de vida é Aquele que sopra com força e suavidade sobre o nosso pó.

Daí a súplica do Apóstolo: «Deixai-vos reconciliar com Deus» (2 Cor 5, 20). Deixai-vos reconciliar: o caminho não se apoia nas nossas forças; com as próprias forças, ninguém pode reconciliar-se com Deus; não consegue. A conversão do coração, com os gestos e práticas que a exprimem, só é possível se partir do primado da ação de Deus. O que nos faz regressar a Ele não são as nossas capacidades nem os méritos que ostentamos, mas a sua graça que temos de acolher. Salva-nos a graça. A salvação é pura graça, pura gratuidade. Disse-o claramente Jesus no Evangelho: o que nos torna justos não é a justiça que praticamos diante dos homens, mas a relação sincera com o Pai. O início do regresso a Deus é reconhecermo-nos necessitados d’Ele, necessitados de misericórdia, necessitados da sua graça. O caminho certo é este: o caminho da humildade. Como me sinto eu: necessitado ou autossuficiente?

Hoje inclinamos a cabeça para receber as cinzas. No termo da Quaresma, abaixar-nos-emos ainda mais para lavar os pés dos irmãos. A Quaresma é uma descida humilde dentro de nós e rumo aos outros. É compreender que a salvação não é uma escalada para a glória, mas um abaixamento por amor. É fazer-nos humildes. Neste caminho, para não perder o rumo, coloquemo-nos diante da cruz de Jesus: é a cátedra silenciosa de Deus. Contemplemos cada dia as suas chagas, as chagas que Ele levou para o Céu e todos os dias, na sua oração de intercessão, faz ver ao Pai. Contemplemos cada dia as suas chagas. Naqueles buracos, reconheçamos o nosso vazio, as nossas faltas, as feridas do pecado, os golpes que nos fizeram sofrer. E contudo, mesmo ali, vemos que Deus não aponta o dedo contra nós, mas abre-nos os braços. As suas chagas estão abertas para nós e, por aquelas chagas, fomos curados (cf. 1 Ped 2, 24; Is 53, 5). Beijemo-las e compreenderemos que precisamente lá, nos buracos mais dolorosos da vida, Deus nos espera com a sua infinita misericórdia. Porque ali, onde somos mais vulneráveis, onde mais nos envergonhamos, Ele veio ao nosso encontro. E agora que veio ter connosco, convida-nos a regressar a Ele, para voltarmos a encontrar a alegria de ser amados.

Texto: Retirado do Site do Vaticano em 21.02.2021- http://www.vatican.va/

Imagem:Retira da "Google imagens" em 21.02.2021.

domingo, 7 de fevereiro de 2021

No Horizonte da quotidianidade inspiradora


“Jesus saiu da sinagoga e foi, com Tiago e João, para a casa de Simão e André”  
(Mc 1,29)

Neste tempo litúrgico conhecido como “Tempo Comum”, nos convém ter referências que nos ajudem a caminhar sem cair na rotina ou na monotonia. O Evangelho deste domingo nos oferece um texto inspirador que sintetiza o modo com que Jesus organizava sua jornada ou dividia o tempo de sua vida pública.

É significativo o fato de que Ele se instale em Cafarnaum, cidade fronteiriça com os povos pagãos, tanto com Tiro e Sidon, como com as cidades da Decápolis. Com isso, Jesus revela que sua missão é universal, e isso será demonstrado em sua incursão pelas terras do Norte ou fazendo travessia para a outra margem do lago, para o leste; por ambas direções adentrava-se em territórios pagãos.

Embora sua presença pública se dê numa cidade comercial e de tanto movimento de pessoas, o início do evangelho de Marcos indica quatro espaços diferentes no quais Jesus se move; cada um deles se converte em ensinamento e inspiração para todos nós.

Pela manhã, vai à sinagoga; ao meio dia, à casa de Simão; ao entardecer atende os enfermos na rua, e na madrugada, de forma sigilosa, se retira a um lugar solitário para orar.

A oração comunitária, a relação doméstica e familiar, a missão evangelizadora e a oração íntima e pessoal com o Pai se conjugam de modo pleno, para nos indicar como deveria ser nossa jornada, quanto à harmonia e ao exercício das relações essenciais: o trato com nosso Deus Pai, a vida social e laboral solidária, a vida de oração e familiar, e a relação interior. Viver a  quotidianidade inspiradora: isso faz a diferença.

Quem sabe, poderíamos nos inspirar no modo de viver diário do Senhor, que deverá ser sempre um referente para o nosso próprio estilo de vida. Do equilíbrio que mantenhamos nas diferentes dimensões dependem o crescimento pessoal, a maturação espiritual e a estabilidade na opção de vida cristã. 

Um traço característico de nossa sociedade é o individualismo, o isolamento narcisista que nos centra e nos concentra em nosso eu como lugar referencial de atenção, dedicação, cuidado e investimento de quase todas as nossas energias disponíveis. Temos a sensação de que tudo, a partir de fora, convida a viver fechados e surdos às vozes que vem do nosso eu mais profundo. Muitas demandas externas nos impulsionam a reduzir nossa vida ao tamanho de um “bonsai”, a atrofiar nossos desejos mais nobres até reduzi-los aos pequenos bens acessíveis e a conformar-nos com pequenas doses de prazer egoísta.

Ao nos convidar para percorrer, junto ao Mestre, numa de suas estadias em Cafarnaum, o evangelista Marcos nos apresenta uma cena na qual vemos, como num relance, tudo o que vai ser a existência de Jesus: Ele se dirige à casa de Simão e André; ali encontrava-se acamada a sogra de Pedro.

Uma mulher anônima, que só a conhecemos quando referida a seu genro e possuída pela febre, foi introduzida na festa comunitária do serviço fraterno pela mão libertadora de Jesus.

É o primeiro relato de cura em que o Mestre vai ao encontro de uma enferma. Jesus ouve a conversa dos discípulos sobre a doença da sogra de Pedro, toma a iniciativa, vai até a mulher doente e a toma pela mão. Ao tomá-la pela mão, compartilha a sua força. E assim, revigorada pela sua força, a febre a deixa, ela consegue se levantar e se põe a servir.

Assim soam e ressoam em nosso interior as palavras do evangelista Marcos: “Jesus se aproximou, tomou-a pela mão e a ajudou a levantar-se”. Gestos cheios de carinho, de compaixão, de autoridade interior. Tudo o que faltava à religião oficial, é revelado agora por este galileu diferente, desafiador, que não age movido por leis frias, mas por um coração e uma mente integrados, em sintonia com o Pai. 

Vale destacar uma constante no evangelho de Marcos: a casa como lugar preferencial da ação de Jesus e da missão dos seus discípulos. Certamente Jesus ensinava nas sinagogas, mas ali sempre encontrava a resistência e o fechamento daqueles que faziam da Lei o centro da vida; por isso, Jesus, como um inspirado mestre, revela um “novo ensinamento”, não em lugares fechados e controlados, mas em espaços abertos, nos campos, à beira do lago de Genezaré, indo pelos caminhos...; Jesus se dirige aos lugares onde homens e mulheres realizam suas atividades comuns, no simples ambiente do trabalho cotidiano e, de maneira privilegiada, nas casas, começando pela sua própria, em Cafarnaum, onde fora residir.

Jesus, como itinerante, dá início a um “movimento de casas”. É que a casa acaba sendo o espaço alternativo que melhor corresponde à atuação do Mestre, enquanto ponto de partida e de chegada de sua missão itinerante. É a partir das casas que Jesus exerce, à margem do que está estabelecido, sua autoridade em favor da vida, sem depender de instituições e funções previamente normatizadas.

Assim, através de uma rede eficiente, ampliada e centrada no Mestre e com funções complementárias, seus seguidores, a partir das casas, prolongam o ministério de Jesus: “viver em saída”, deslocar-se em direção aos excluídos, revelar a presença do Pai na simplicidade do cotidiano das pessoas, etc. Neste sentido, a casa cumpre uma função vital para a expansão da causa do Reino de Deus. Em outras palavras, a causa de Jesus (Reino) encontra nas casas seu lugar natural. 

É fácil concluir que esta rede de seguidores nas casas acabe se organizando de uma forma concêntrica, ao mesmo tempo que horizontal, favorecendo de modo definitivo e natural o avanço do Reino; tal organização se diferencia das estruturas piramidais e hierárquicas, próprias de toda e qualquer instituição, com os riscos de esclerose que lhe são inerentes. Aqui, revela-se sumamente estimulante resituar a continuidade da causa de Jesus de Nazaré nos ambientes fraternos e igualitários, onde a casa se revela como espaço próprio da simplicidade e da quotidianidade.

Trata-se, pois, de uma alternativa urgente, frente à persistência petrificada de conservar formas e estruturas anacrônicas que, em função do poder, continuam a predominar em nossos ambientes cristãos, apesar dos apelos insistentes do próprio evangelho.

O Evangelho de Jesus é experiência de casa, de comunhão e palavra para todos, lugar aberto à novidade do Reino. A primitiva comunidade dos seguidores de Jesus não começou formando uma nova religião instituída, nem se preocupou com construções de templos ou com organizações hierarquizadas; ela se apresentou como uma federação de casas abertas, a partir dos pobres e para os pobres, criando redes de comunicação e de vida fraterna, casas-família, impulsionadas pelo testemunho e presença do Espírito do mesmo Jesus. 

Ser seguidor(a) é ser chamado(a) a viver no seu dia-a-dia esta mística do amor da maneira como Jesus viveu (na família, no trabalho, no descanso, na luta em favor da vida, nos compromissos sociais...). 

cotidiano é o meio no qual o amor toma densidade e se expressa preferentemente; ele é o lugar privilegiado da vivência da espiritualidade do seguimento, deixando-nos conduzir pelo mesmo Espírito que animou Jesus e o levou a inserir-se na trama da vida humana e a dignificá-la.

Falamos de uma quotidianidade humana, isto é, daquelas atividades de nossa vida diária que, embora irrelevantes em sua aparência, tem uma razão de ser, uma motivação que não se reduz à mera casualidade ou a um impulso instintivo de repetição ou automatismo.

Sabemos que o cotidiano revela um perigo que é a rotina, essa sensação de fazer tudo mecanicamente, inclusive a vivência da fé, e de perder com isso o ardor do novo ou o impacto do extraordinário.

amor é precisamente o lubrificante que dá sentido à nossa vida cotidiana e nos faz superar as dificuldades inerentes à mesma; o descentramento de nós mesmos, a busca da verdade e do bem comum, a ação comprometida com a vida dos outros... se tornam “normais” quando cultivamos o amor.

Texto bíblico:  Mc 1,29-39 

Na oração: Espírito nos faz abrir os olhos às realidades novas em nossa vida cotidiana; mas nossos olhos somente se abrirão se formos fiéis à voz do Espírito nos simples atos de nossa vida cotidiana.

- suas atividades diárias fazem parte do seu caminho para Deus? Você tem consciência que cada dia é um “tempo de graça”? Você “apalpa” a presença de Deus nas “rotinas diárias”?

Pe. Adroaldo Palaoro sj

04.02.2021

Texto - Retirado do site - "CATEQUESEHoje -  www.catequesehoje.org.br ", em 07.02.2021 - Um site de Catequese do Brasil, com muita qualidade!

 Imagem: retirada da "Google Imagens em em 07.02.2021.

sábado, 6 de fevereiro de 2021

Deixa-te olhar por Jesus

 


“Jesus tinha entrado em Jericó, e estava atravessando a cidade. Havia aí um homem chamado Zaqueu: era chefe dos cobradores de impostos, e muito rico. Zaqueu desejava ver quem era Jesus, mas não o conseguia, por causa da multidão, pois ele era muito baixo. Então correu na frente, e subiu numa figueira para ver, pois Jesus devia passar por aí. Quando Jesus chegou ao lugar, olhou para cima, e disse: «Desce depressa, Zaqueu, porque hoje preciso ficar em tua casa.» Ele desceu rapidamente, e recebeu Jesus com alegria. Vendo isso, todos começaram a criticar, dizendo: «Ele foi se hospedar na casa de um pecador!»

Zaqueu ficou de pé, e disse ao Senhor: «A metade dos meus bens, Senhor, eu dou aos pobres; e, se roubei alguém, vou devolver quatro vezes mais.» Jesus lhe disse: «Hoje a salvação entrou nesta casa, porque também este homem é um filho de Abraão. De fato, o Filho do Homem veio procurar e salvar o que estava perdido.» “ Lc 19, 1-10 

VISITA PASTORAL DO PAPA FRANCISCO A ALBANO

CELEBRAÇÃO EUCARÍSTICA HOMILIA DO SANTO PADRE

“O episódio que ouvimos passa-se em Jericó, a famosa cidade destruída no tempo de Josué que, segundo a Bíblia, já não se deveria reconstruir (cf. Gs 6): deveria ser “a cidade esquecida”. Mas Jesus, diz o Evangelho, «entra e atravessa» Jericó (cf. Lc 19, 1). E nessa cidade, que está abaixo do nível do mar, Ele não tem medo de atingir o nível mais baixo, representado por Zaqueu. Ele era um publicano, aliás, o «chefe dos publicanos», isto é, daqueles judeus odiados pelo povo, que cobravam os impostos para o Império romano. Era «rico» (v. 2) e é fácil intuir como se tornou assim: em detrimento dos seus concidadãos, explorando os seus compatriotas. Aos olhos do povo Zaqueu era o pior, o insalvável. Mas não aos olhos de Jesus, que o chama pelo nome, precisamente a ele, Zaqueu, que significa “Deus recorda-se”. Na cidade esquecida, Deus lembra-se do maior pecador.

Em primeiro lugar, o Senhor recorda-se de nós. Não se esquece de nós, não nos perde de vista, apesar dos obstáculos que nos podem afastar d’Ele. Obstáculos que não faltaram no caso de Zaqueu: a sua baixa estatura física e moral, mas também a sua vergonha, motivo pelo qual procurava ver Jesus, escondido entre os ramos da árvore, provavelmente esperando não ser visto. E depois as críticas externas: na cidade, por causa daquele encontro, «todos murmuravam» (v. 7) — mas acho que em Albano é a mesma coisa: murmura-se... Limites, pecados, vergonha, tagarelices e preconceitos: nenhum obstáculo leva Jesus a esquecer o essencial, que é o homem a amar e salvar.

 O que nos diz este Evangelho no aniversário da vossa Catedral? Que cada igreja, que a Igreja com letra maiúscula, existe para manter viva no coração dos homens a recordação de que Deus os ama. Existe para dizer a cada um, até ao mais distante: “Tu és amado e és chamado pelo nome por Jesus; Deus não se esquece de ti, és querido por Ele”. Estimados irmãos e irmãs, como Jesus, não tenhais medo de “atravessar” a vossa cidade, de ir ao encontro dos mais esquecidos, daqueles que estão escondidos atrás dos ramos da vergonha, do medo, da solidão, para lhes dizer: “Deus lembra-se de ti”!

Gostaria de destacar uma segunda ação de Jesus. Além de se recordar, de reconhecer Zaqueu, Ele antecipa. Vemo-lo no jogo de olhares com Zaqueu. Ele «procurava ver quem era Jesus» (v. 3). É interessante que Zaqueu não procurava apenas ver Jesus, mas ver quem era Jesus: ou seja, entender que tipo de mestre Ele era, qual era o seu traço distintivo. E não o descobre quando olha para Jesus, mas quando é olhado por Jesus. Pois enquanto Zaqueu procura vê-lo, Jesus vê-o primeiro; antes que Zaqueu fale, Jesus fala com ele; antes de convidar Jesus, Jesus vai à sua casa. Eis quem é Jesus: aquele que nos vê primeiro, aquele que nos ama primeiro, aquele que nos acolhe primeiro. Quando descobrimos que o seu amor nos antecipa, que nos alcança antes de tudo, a vida muda. Querido irmão, querida irmã, se como Zaqueu tu procuras um sentido para a vida, e quando não o encontras, abandonas-te a “substitutos do amor”, como as riquezas, a carreira, o prazer, alguma dependência, deixa-te olhar por Jesus. Só com Jesus descobrirás que és sempre amado e farás a descoberta da vida. Sentir-te-ás intimamente tocado pela ternura invencível de Deus, que comove e move o coração. Assim foi para Zaqueu e assim é para cada um de nós, quando descobrimos o “primeiro” de Jesus: Jesus que nos antecipa, que nos olha primeiro, que nos fala primeiro, que nos espera primeiro.

Como Igreja, perguntemo-nos se Jesus vem ao nosso encontro primeiro: em primeiro lugar está Ele ou a nossa agenda, Ele ou as nossas estruturas? Qualquer conversão deriva de uma antecipação da misericórdia, nasce da ternura de Deus que arrebata o coração. Se tudo o que fizermos não tiver início no olhar de misericórdia de Jesus, corremos o risco de mundanizar a fé, de a complicar, de a encher de contornos: questões culturais, visões eficientistas, opções políticas, escolhas partidárias... Mas esquecemos o essencial, a simplicidade da fé, o que vem antes de tudo: o encontro vivo com a misericórdia de Deus. Se isto não estiver no centro, se não estiver no início e no fim de todas as nossas atividades, corremos o risco de manter Deus “fora de casa”, isto é, na Igreja, que é a sua casa, mas sem nós. O convite de hoje é: deixa-te “misericordiar” por Deus! Ele vem com a sua misericórdia.

 Para conservar o “primeiro” de Deus, Zaqueu serve-nos de exemplo. Jesus vê-o primeiro porque ele subiu a um sicómoro. Foi um gesto que exigiu coragem, impulso, fantasia: não se veem muitos adultos a subir às árvores; são os jovens que o fazem, é algo que fazemos quando somos crianças, todos nós o fizemos. Zaqueu venceu a vergonha e, num certo sentido, voltou a ser uma criança. É importante que voltemos a ser simples, abertos. Para conservar o “primeiro” de Deus, ou seja, a sua misericórdia, não devemos ser cristãos complicados, que elaboram mil teorias e se dispersam em busca de respostas na rede, mas devemos ser como as crianças. Elas precisam dos pais e dos amigos: também nós precisamos de Deus e dos outros. Não somos autossuficientes, devemos desmascarar a nossa autossuficiência, superar os nossos fechamentos, voltar a ser pequeninos dentro, simples e entusiastas, cheios de impulso para Deus  e de amor ao próximo.

 Gostaria de destacar uma última ação de Jesus, que nos faz sentir em casa. Ele diz a Zaqueu: «Hoje tenho de ficar em tua casa» (v. 5). Em tua casa. Zaqueu, que se sentia forasteiro na sua cidade, volta para casa como uma pessoa amada. E, amado por Jesus, redescobre os seus vizinhos e diz: «Vou dar metade dos meus bens aos pobres e, se defraudei alguém em qualquer coisa — e este homem tinha roubado muito — vou restituir-lhe quatro vezes mais» (v. 8). A Lei de Moisés exigia que se restituísse, acrescentando um quinto (cf. Lv 5, 24); Zaqueu dá quatro vezes mais: vai muito além da Lei, porque encontrou o amor. Sentindo-se em casa, abriu a porta ao próximo.

 Como seria bom se os nossos vizinhos e conhecidos sentissem a Igreja como a sua casa! Infelizmente, acontece que para muitas pessoas as nossas comunidades se tornam alheias e pouco atraentes. Às vezes, também nós somos tentados a criar círculos fechados, lugares íntimos entre os escolhidos. Sentimo-nos eleitos, sentimo-nos elite... Mas há muitos irmãos e irmãs que têm saudades de casa, que não têm a coragem de se aproximar, talvez porque não se sentiram acolhidos; talvez porque encontraram um padre que os tratou mal ou que os mandou embora, ou quis que pagassem os sacramentos — isto é mau! — e afastavam-se. O Senhor deseja que a sua Igreja seja uma casa entre as casas, uma tenda hospitaleira onde cada homem, peregrino da existência, se encontre com Ele, que veio habitar entre nós (cf. Jo 1, 14).

 Irmãos e irmãs, que a Igreja seja um lugar onde os outros nunca sejam vistos de cima para baixo mas, como Jesus com Zaqueu, de baixo para cima. Recordai-vos que o único momento em que é lícito fitar uma pessoa de cima para baixo é para a ajudar a levantar-se, caso contrário, não é lícito. Só naquele momento: fitá-la assim, porque ela caiu. Nunca olhemos para as pessoas como juízes, mas sempre como irmãos. Não sejamos inspetores da vida dos outros, mas promotores do bem de todos. E para sermos promotores do bem de todos, há algo que ajuda muito a manter a língua firme: não falar mal do próximo! Mas às vezes, quando falo destas coisas, ouço as pessoas dizerem: “Padre, olha, é algo mau, mas vem-me, porque vejo algo e tenho vontade de criticar”. Sugiro um bom remédio para isto — além da oração — um remédio eficaz é: morde a língua! Ela vai inchar na tua boca e não conseguirás falar!

 «O Filho do Homem — conclui o Evangelho — veio procurar e salvar o que estava perdido» (Lc 19, 10). Se evitarmos aqueles que nos parecem perdidos, não pertencemos a Jesus. Peçamos a graça de ir ao encontro de cada um como irmão e de não ver ninguém como inimigo. E se formos feridos, retribuamos com o bem. Os discípulos de Jesus não são escravos dos males passados mas, perdoados por Deus, agem como Zaqueu: pensam unicamente no bem que podem praticar. Demos de graça, amemos os pobres e quantos não têm como nos retribuir: seremos ricos aos olhos de Deus!

Estimados irmãos e irmãs, desejo que a vossa Catedral, como todas as igrejas, seja o lugar onde  cada um de vós se sinta recordado pelo Senhor, antecipado pela sua misericórdia e recebido em casa. De tal maneira que na Igreja possa verificar-se a coisa mais bonita: alegrar-se porque a salvação entrou na vida (cf. v. 9).

 Assim seja!

Praça Pia, Albano Domingo, 21 de Setembro 2019”

Texto: Retirado do site Vaticano em 06.02.2021

Imagem: Blog Catequese Missionária