sábado, 14 de março de 2015

“Se mudamos o homem, podemos mudar o mundo”



«Entrevista a Andrea Riccardi, fundador da Comunidade de Santo Egídio  

   Há 46 anos, Andrea Riccardi, na altura um jovem estudante, decidiu, juntamente com alguns amigos, levar o Evangelho à prática e desenvolver acções concretas a favor dos mais desfavorecidos. O que o levou a tomar esta iniciativa?

  A Comunidade de Santo Egídio nasceu em 1968, entre estudantes de um liceu romano. O ano de 1968 foi um ano particular. No mundo juvenil respirava-se um ar de mudança, entrevia-se a possibilidade de mudar o mundo e, junto a isto, havia um outro ambiente que se respirava, o do Concílio do Vaticano II, do renovamento em curso na Igreja Católica. Neste clima nasceu a Comunidade. Mas o incentivo à mudança poderia ter sucesso apenas se partisse da mudança pessoal. Com simplicidade, mas com convicção, pensava: se mudamos o homem, podemos mudar o mundo. Apenas homens novos poderão criar um mundo novo. Por isso, confiámo-nos à Palavra de Deus e começamos a segui-La, tentando pô-La em prática, frequentando o mundo da periferia de  Roma, entre os pobres. Assim, os pobres foram, desde o início, os nossos companheiros, os nossos amigos, parte da nossa família.

  Foram sempre bem aceites pela sociedade e pela Igreja?

  O encontro com os pobres e o desejo de comunicar o Evangelho fez-nos sempre viver uma dimensão ampla, uma visão alargada, aberta ao mundo. Encontrar os outros, falar, dialogar, a amizade são traços decisivos do nosso modo de ser. Em Maio de 1986, o Pontifício Conselho dos Leigos reconheceu a Comunidade de Santo Egídio como uma «Associação Pública de Leigos». Um reconhecimento que deu carácter oficial a uma presença de já quase 20 anos dentro da Igreja.

  Nos anos 70 e 80, a Comunidade expandiu-se consideravelmente. Primeiro para outras cidades italianas, depois um pouco por todo o mundo. O que determinou o crescimento e a internacionalização de um pequeno projecto que nasceu num bairro italiano e hoje tem 50 mil leigos em mais de 70 países?

  No início da nossa história não pensávamos em criar comunidades fora de Roma: a nossa escolha era edificar a Comunidade na Igreja local de Roma. Diria que foram a vontade de anunciar o Evangelho e a amizade com os pobres que nos levaram a olhar para além da nossa cidade, para Itália e para o mundo. As nossas Comunidades fora de Roma nasceram sempre de um encontro pessoal com alguém que queria viver no espírito de nossa Comunidade, a centralidade do Evangelho e o serviço aos pobres. Assim, com o passar dos anos, nasceram comunidades fora de Roma, primeiro em Itália e depois em todo o mundo. Hoje, estamos presentes em mais de 70 países, em todos os continentes. Formamos assim uma fraternidade de Comunidades que em Roma tem o seu ponto de unidade. Sejam grandes ou pequenas, todas as nossas Comunidades rezam e servem os pobres, sentindo-se parte de uma família sem fronteiras.

  Para além do serviço aos mais desfavorecidos (pobres, doentes, imigrantes, presidiários, etc.), uma das principais vertentes da Comunidade é a defesa da paz e dignidade humana e a promoção do diálogo inter-religioso. Que projectos têm sido desenvolvidos neste âmbito? Em que países?

  A escuta do Evangelho e encontro com os homens fizeram amadurecer em nós a vocação para o diálogo, para a paz. O trabalho pela paz e o diálogo é certamente uma componente essencial do espírito de Santo Egídio. Graças à mediação da Comunidade, a 4 de Outubro de 1992, é assinado em Roma o acordo de paz entre o governo moçambicano e a guerrilha, que punha fim a uma guerra que durou 16 anos, com um milhão e meio de mortos. Às vezes, perguntam-nos, como então fez a jornalista do Washington Post: «Quando é que deixastes a assistência aos pobres e vos lançastes na diplomacia?». Mas o trabalho pela paz não é diferente do trabalho pelos pobres, pelo contrário, nasce precisamente do empenho pelos pobres porque a guerra é mãe de todas as pobrezas. O nosso trabalho pela paz não criou um Santo Egídio «diplomático», o trabalho pela paz começou ajudando os pobres em Moçambique onde tudo estava bloqueado pela guerra. O caso de Moçambique fez-nos intuir que os cristãos têm uma grande força de paz. Pode dizer-se que, depois de 1989, todos podem fazer a guerra, qualquer grupo, etnia, máfia pode pegar nas armas e fazer guerra. Mas também é verdade que todos podem fazer mais pela paz e trabalhar mais pela paz. A nossa experiência fez-nos descobrir que tínhamos recursos de paz.

  De que forma as diferentes religiões podem dar um contributo para a paz?

O tema da paz hoje é central e sê-lo-á cada vez mais na vida das comunidades cristãs e dos crentes de todas as religiões. A guerra voltou ao território europeu, entre a Rússia e a Ucrânia. A Síria é afectada por uma guerra dilacerante e desumana. O Papa Francisco falou dos conflitos contemporâneos quase como uma terceira guerra mundial, mas aos bocados ou por capítulos. Neste cenário é lícito perguntar-se: a paz representa o nosso futuro? O que podemos fazer pela paz? Acreditamos que as religiões podem trabalhar pela paz e pela convivência. O diálogo entre as religiões  é uma resposta adequada para viver juntos em regiões e cidades, cada vez mais complexas, etnicamente e religiosamente. É uma prática quotidiana, que se torna proposta e cultura. É o caminho do «Espírito de Assis», do primeiro grande encontro entre as religiões, convocado em 1986, na cidade de S. Francisco, por João Paulo II, ainda no tempo da Guerra Fria. A Comunidade de Santo Egídio continuou este caminho desde 1986, ano após ano, reunindo pessoas das várias religiões, e pessoas sem religião, para trabalhar nesta delicada fronteira, espiritual, mas concreta.

  Como lida com uma guerra alicerçada em fundamentalismos religiosos?

  As religiões, por vezes, são atraídas pelo culto da violência, capazes de solicitar um fanatismo simplificador e desumano. Diante disto, não só as religiões devem resistir, mas devem voltar à sua profunda força de paz. A força do «Espírito de Assis» está em confirmar que não existe guerra e violência em nome de Deus: dizemo-lo dentro das próprias tradições religiosas, advertindo que a violência em nome de Deus é uma blasfémia.

  O nome Comunidade de Santo Egídio, mesmo fazendo referência a uma localidade italiana, funciona como marca fora de portas?

  O Papa Francisco, visitando a nossa comunidade em Junho passado, disse-nos que Oração, Pobres e Paz são os traços fundamentais da vocação da Comunidade. É uma bela definição daquilo que somos e queremos ser. Mas não é um traço apenas romano ou italiano, é um traço universal.»
«Entrevista retirada da  revista “Mensageiro do Coração de Jesus” – Secretariado Nacional do Apostolado da Oração- de Janeiro de 2015, pags.4,5 e 6.»

Cristo, Filho de Deus resgatou-nos com Seu Sangue | M. Luís