“Esforçai-vos não pelo alimento que se perde, mas pelo
alimento que permanece até a vida eterna e que o Filho do homem vos dará” (Jo
6,27)
Com o Evangelho de hoje iniciamos a reflexão sobre o
Discurso do Pão da Vida, que se prolongará durante os próximos domingos.
Depois da multiplicação dos pães, o povo foi atrás de Jesus; tinha visto o
milagre, comeu com fartura e queria mais! Procurou o milagroso e não buscou o
sinal e o apelo de Deus que nele se escondia.. Quando o povo encontrou Jesus em
Cafarnaum, teve com ele uma longa conversa, chamada Discurso do Pão da Vida, um
conjunto de sete pequenos diálogos que explicam o significado da multiplicação
dos pães como símbolo do novo Êxodo e da Ceia Eucarística.
O povo viu o que aconteceu, mas não chegou a
entendê-lo como um sinal de algo mais alto ou mais profundo. Buscou pão e vida
mas parou na superfície: a fartura de comida. No entender do povo, Jesus fez o
que Moisés tinha feito no passado: deu alimento farto para todos no
deserto.
Indo atrás de Jesus, eles queriam que o passado se
repetisse. Mas Jesus pede que o povo dê um passo adiante. Além do trabalho pelo
pão que perece, deve trabalhar também pelo alimento não perecível. Este novo
alimento será dado pelo Filho do Homem; Ele traz avida que dura para sempre.
Ele abre para todos um novo horizonte sobre o sentido da vida e sobre
Deus.
Com frequência, a existência humana parece uma corrida
em busca daquilo que nos sacia de um modo definitivo. Nesta corrida, entram
elementos que nos são familiares: necessidade, ansiedade, vazio, busca,
insatisfação... Todos eles, à primeira vista, remetem à percepção de nós mesmos
como seres carentes. Seria, pois, essa carência aquela que desencadearia todo o
processo de busca.
De fato, o ser humano é um ser insaciável,
insatisfeito... vive eternamente buscando, muitas vezes sem saber o quê. Em
contato com o seu interior, sente a necessidade de preenchê-lo a qualquer
preço; na maioria das vezes, preenche-o com “coisas”: busca de poder, posses,
prestígio, pão que se perde... e sente-se frustrado, porque nada lhe
satisfaz. Só o Pão vivo pode preencher seu interior.
- “Mas a fome de Deus que eu levo comigo não conhece
descanso: ela é exigente! Então eu sigo...
Ela é tremenda e persistente! Então
eu sigo... cada vez mais para frente!
Ela é constante e forte! Então eu
sigo... Até à morte” (C. de M. Doherty).
Todo ser humano é aventureiro por essência; com ardor,
ele anseia por uma causa última pela qual viver, um valor supremo que unifique
a multiplicidade caótica de suas vivências e experiências, um projeto que
mereça sua entrega radical. Para dar sentido à sua vida e realizar-se
como pessoa, o ser humano necessita da auto-transcendência, isto é, viver para
além de si mesmo, de seus impulsos, caprichos, desejos...
Carrega dentro de si a fome do infinito, a
criatividade, a capacidade de romper fronteiras, os sonhos, a luz.Portador de uma força que o arrasta para algo maior que ele... não se limita ao próprio mundo; traz uma aspiração profunda de ser pleno, de realização, de busca do “mais”...
Ele é desafiado a deixar a superfície banal e navegar águas profundas da sua própria existência.
A conversa de Jesus com o povo, com os judeus e com os
discípulos é um diálogo bonito, mas exigente. Jesus procura abrir os olhos das
pessoas para que aprendam a ler os acontecimentos e descubram neles o rumo que
deve tomar na vida. Pois não basta ir atrás de sinais milagrosos que
multiplicam o pão para saciar uma carência corporal. Não só de pão vive o ser
humano.
O empenho em favor da vida sem uma mística não alcança
a raiz.
Enquanto vai conversando com Jesus, as pessoas vão
ficando cada vez mais contrariadas com as palavras dele. Mas Jesus não cede,
nem muda as exigências. O discurso parece um funil. Na medida em que a conversa
avança, é cada vez menos gente que sobra para ficar com Jesus. No fim só sobram
os doze, e nem assim Jesus pode confiar em todos eles!
É quase sempre assim: quando o evangelho começa a
exigir compromisso, muita gente se afasta.
Jesus, com sua presença e seus ensinamentos, desperta
outras “fomes”: transcendência, novas relações, horizontes abertos, mundo
da partilha...
O discurso do Pão da Vida desvela esta realidade: o
ser humano é surpreendente, inesperado, imprevisível... é pulsação original, é
interpelação inquietante; é existência peregrina, é uma mina de significados e
riquezas. Ele é seduzido pela liberdade que lhe escancara horizontes novos e
lhe abre mares desafiantes. Ele é “espaço à vida aberta”. Há nele algo maior
que o leva a ser mais verdadeiro, mais justo, mais criativo, mais arrojado,
mais responsável.
Ele é chamado a superar medos, a escolher rumo
construtivo, a definir sua identidade pessoal e a optar por causas humanas que
o fazem transcender.
O ser humano pode transcender-se, ir além de si
mesmo... E transcender não significa fugir da própria realidade, mas
mergulhar na própria condição humana; “transcender é humanizar-se”.
O impulso de “ir além” é talvez o desafio mais secreto
e escondido no ser humano. Ele se recusa a aceitar a realidade na qual está
mergulhado porque se sente maior do que tudo o que o cerca.
Com seu pensamento, desejo e sonho, ele habita as
estrelas e rompe todos os espaços.Numa palavra, o ser humano é um projeto infinito; tem sentido de transcendência, projeta-se em muitas direções. Ele tem fome e sede de amplos horizontes.
“Entrar” no caminho de Cristo é viver em
“terra de andanças”.
O discurso de Jesus toca naquilo que é mais humano em
nós: mundo dos desejos, dos sonhos, as grandes intuições... Tal apelo vem ao
encontro deste dinamismo humano para potencializá-lo e abrir uma nova
perspectiva: aquela centrada na pessoa e no projeto de Jesus Cristo.
Desejamos, com intensidade, com fome, com paixão, com
alegria e júbilo... Somos capazes de desejar com a urgência das crianças, com a
impertinência dos adolescentes, com a intensidade dos jovens, com a perspectiva
dos adultos e com a sabedoria dos anciãos. Desejamos porque estamos vivos e
porque somos capazes de imaginar e sonhar: mundos melhores, vidas melhores,
relações melhores...
O desejo é também um dos pilares nos quais se sustenta
a fé. Crer é desejar.
O desejo nos ajuda a elevar o olhar para além do
imediato; podemos sair do cotidiano, do mais prosaico, e lançar a vista e o
coração ao que é possível mas que ainda não está presente. Se caminharmos com
olhar fixo somente no imediato, no hoje, no aqui e agora, então nos faltará
perspectiva para dirigir nossos passos para algum lugar que valha a pena.
Os homens e as mulheres de todos os tempos e lugares
trazem, como que enraizados nas fendas mais profundas de sua alma, sonhos de
rara beleza. São desejos de convivialidade, de superação da dor e da solidão,
sonhos de fraternidade e harmonia... Era certamente nessa direção que Jesus
apontava ao falar do Pão da Vida, como o mundo das esperanças e
possibilidades. “Um outro mundo é possível”.
É preciso forte dose de ousadia e coragem para
transcender-se, ir além de si mesmo...
Texto bíblico: Jo 6,24-35
Na oração:
* deixe-se conduzir pela “fome e sede” de Deus
que está enraizada em seu coração;
* faça o possível para estimular esta
fome, entregando-se a ela;
* esteja certo de que esta “inquietação” tem sua
resposta no Amor de Deus, presente na Criação;
* Que desejas, pensando a longo prazo?
* A que aspiras na vida e nas relações de hoje?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
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