Detalhes
Transcrevemos a partilha da Ir. Joana Ribeiro na Semana
Bíblica Nacional, que se [realizou em Agosto de 2019], em Fátima.
«Antes de mais, quero agradecer o convite que me foi feito
para estar aqui. Aqui sinto-me sempre em casa pois os frades capuchinhos foram
e são companheiros de caminho, que me proporcionaram o privilégio de viver com
eles em missão. Guardo sempre o vosso testemunho como uma luz. Obrigada!
Peguei num poema de Daniel Faria, usei as suas palavras como
fio condutor, como fio de Ariadne, do que gostaria de partilhar convosco, pois
quem vive a missão com a intensidade com que ela me envolve, corre o risco de
permanecer a falar ininterruptamente. Procurei, assim, delimitar-me. Ele diz:
Uma palavra pregada ao silêncio de dizer-se
Como nunca fora ouvida.
Só posso viver cabendo nela
Habito-a
Como Jonas o grande peixe.
Ela pronuncia-me
Traz-me em viagem do nada para o silêncio. (...)
Eu posso propagá-la
E posso amá-la até me transformar” (Daniel Faria)
“Há uma
palavra-pessoa”...
Fui enviada em missão para Laleia, interior de Timor-Leste,
onde cheguei no dia 1 de outubro de 2011. Vivi a loucura de me despedir do meu
trabalho, de deixar a minha casa, carro, a minha família e partir para o outro
lado do mundo, cerca de 15 mil quilómetros. Parti por um ano mas o chão
vermelho tornou-se a minha terra, aqueles rostos a minha família e fiquei a
pertencer-lhe para sempre. Timor é também a minha terra, a minha gente.
Quando cheguei a Timor tinha a mala cheia de sonhos, ideias,
projetos, expectativas e uma vontade imensa de dar, de dar, de dar-me! Mas Deus
tirou-me as palavras e deu-me o silêncio.
Sim... “Uma palavra
pregada ao silêncio de dizer-se como nunca fora ouvida.”
Em Laleia, fiquei sem palavras... sem palavras que me
permitissem comunicar. Poucas pessoas compreendiam português apenas tétum. É
como se as palavras que sempre usei perdessem a capacidade de apontar o
sentido, de possibilitar encontros e teria de abraçar palavras agora
incompreensíveis e distantes. Era tempo de escutar, de aprender, de calar.
E o meu livro de aprendizagem foi... imaginem só, o Novo
Testamento em tétum. Todas as semanas a Bíblia peregrinava de família em
família (aos domingos a família que tinha acolhido a Bíblia em sua casa
levava-a na procissão de entrada na Eucaristia dominical e outra família
recebia-a no final da Eucaristia). Às quintas feiras, os missionários (freis,
leigos, jovens em formação), juntamente com alguns paroquianos, fazíamos a
lectio divina na casa desta família. Eu aprendia as palavras do evangelho de
cada domingo e as minhas primeiras palavras foram Maromak (Deus) e Na’i
(Senhor) e ia treinando a escrever umas frases muito simples para poder
partilhar algo com as famílias. Ainda hoje tenho escrevinhado na minha bíblia
palavras em tétum que me recordam este caminho. “Imi mai haree” (Vinde e
vereis); “Ha´u mak ne´e” (Eis-me aqui Senhor).
Todos nós quando temos de aprender uma nova língua
experimentamos a frustração de não conseguir fazê-lo, as gargalhadas, a
partilha da fraqueza e das dificuldades. Permaneci e fui parte daquele chão
onde Jesus escrevia.
Muitos diziam que a Palavra de Deus traduzida para tétum
perdia muito da sua profundidade, dado ser uma língua com poucos conceitos mas,
para mim, a dar os primeiros passos na missão e a recomeçar, a simplicidade das
palavras aproximaram-me de Deus e permitiu-me balbuciar as minhas primeiras
palavras, imitando-O.
E depois fui notando que as palavras já não viviam presas num
livro, mas que as lia em tantas pessoas e situações que encontrava. E passagens
bíblicas que já sabia de cor, e às quais me fui tornando quase imune e
indiferente, voltaram a surpreender-me e a transformar-me. Quantas vezes
ouvimos a passagem do nascimento de Jesus, até ao ponto de se tornar banal, sem
comover ou mover. A mim isso aconteceu, até encontrar a avó Maria. Penso que
“Deus passeava maravilhado nas palavras dela, como um camponês pelo seu campo”
(Bobin, 72).
“Só posso viver cabendo
nela. Habito-a como Jonas o grande peixe.”
A avó Maria, ficou com a sua casa (palhota feita de paus de
palmeira) soterrada na chuva forte do dia anterior, e sozinha e sem família,
vieram chamar-nos para a ajudar. Ela teve 9 filhos mas, tal como seu marido,
morreram durante a guerra, durante a ocupação indonésia. Quando nós lá
chegamos, nem queríamos acreditar no que os nossos olhos viam. Uma velhinha
quase sem roupa, a tremer de frio, deitada num pano velho no chão de terra
batida de uma cozinha de um vizinho, rodeada de animais: cães, ovelhas, porcos
e galinhas, que enchiam aquele espaço de excrementos. A avó Maria, quando nos
aproximamos e nos apresentamos, abraçou-nos com um sorriso de orelha a orelha e
apercebemo-nos que estava quase cega. Ela: “tinha uma cara maravilhosamente
enrugada, semelhante à casca de uma árvore secular” (Bobin, 67). Desde o
primeiro momento, estávamos decididas a levá-la para a nossa casa e começamos a
conversar com ela para a convencer. Mas as suas palavras foram revelação e
desnudaram-nos completamente.
Dissemos-lhe em tétum: “Avó, não pode ficar aqui. Isto não
tem condições nenhumas para a avó viver. Não tem casa, nem comida, nem
agasalho.”
E ela respondeu-nos, com um sorriso calmo: “Nossa Senhora
também deu à luz a Jesus num sítio assim, não foi?!
Ficamos sem palavras. Depois continuamos: “Avó, não pode
ficar aqui sozinha. Venha connosco e depois vamos arranjar um sítio para a avó
viver.”
E ela, cheia de confiança disse: “Eu não estou sozinha. Deus
está sempre comigo. E mandou as irmãs para cuidar de mim, não foi?!
As lágrimas corriam pelo meu rosto ao escutar as suas palavras,
e vivi o evangelho do nascimento de Jesus ali, naquele pedaço de terra batida.
Ele já tinha nascido no coração, nas palavras e no sorriso desta nossa avó.
Depois de cuidar dela, levar-lhe um colchão, dar-lhe banho,
roupa e comida todos os dias, conseguimos que fosse almoçar connosco. Quando
entramos fomos à capela onde estávamos todos para rezar. Dissemos-lhe que
estávamos na capela e que podia fazer uma oração se quisesse.
Ela gritou assim: “Deus Pai, eu não tenho nada. Não tenho
casa, não tenho comida, não tenho ninguém. Senhor, eu estou cega, eu não vejo
nada. Senhor, que eu veja! Senhor, que eu veja!”. Todas nós permanecemos em
silêncio, com as lágrimas a escorrer pelo rosto e eu repetia no meu coração a
sua oração: “Senhor, que eu veja!”. Estas palavras eram carne e sangue, nesse
dialecto que só os pobres sabem, fazendo-os espaço e instrumentos de santidade:
“Eu te bendigo ó Pai...” (Lc 10, 21)
Após vários meses conseguimos que fosse viver com um primo
numa terra afastada dali, após ter feito a operação às cataratas e hoje vê e
está bem junto da sua família.
“Ela pronuncia-me,
traz-me em viagem do nada para o silêncio.”
Quantas vezes, as palavras deixam de ter a força de nos
surpreender e desinstalar, acolhidas na repetição do quotidiano, sem comoção. A
missão quebra essa indiferença pois as palavras encarnadas voltam a ter a força
da palavra semeada.
Na missão houve vários projetos a que me entreguei: a
abertura do jardim de infância de Laleia, a bênção de sentir os abraços dos
meninos e de os ouvir chamar, pois mesmo os leigos tratamo-nos como irmãos,
como o bom Pai São francisco: “irmã Joana”, nome que o Senhor designou e que
apontava já caminho novos; o colaborar na catequese, na preparação de
materiais, na preparação da liturgia, o centro social S. Francisco de Assis, a
biblioteca, a pastoral das pessoas portadoras de deficiência em toda a diocese
de Baucau; a rádio comunitária, sonhar, gravar e preparar os programas para
irem para o ar, e tantos outros que nasciam com as necessidades dos que nos
batiam à porta, e nós freis e leigos, acolhíamos todos. Íamos para o campo de
arroz, levávamos pessoas ao hospital, desdobrávamo-nos em encontros e as
palavras “saiam” da Bíblia e vinham ao nosso encontro dando sentido e apontando
caminhos sempre novos. “Irmã entre, que Deus até um simples copo de água
recompensa”; “Irmã obrigada porque cuida de nós em nome do Senhor”. Lavaram-me
os pés tantas vezes que fiquei parte deles e eles parte de quem sou ou de quem
quero ser.
Recordo de forma muito especial, o início da rádio
comunitária de Laleia, a alegria das pessoas quando ouviam a sua voz na rádio,
as histórias que partilhavam sobre a sua cultura, a sua fé, e em que, mesmo os
que viviam mais longe nas montanhas, se sentiam mais próximos e menos sós. Na diferença,
Deus foi-se revelando e tornou-se mais e mais presente. Achava que bastava
aprender as palavras em tétum mas depois descobri que os significados eram tão
diferentes, que a única língua era mesmo a do Senhor: o amor!
Estive num orfanato, cerca de 3 meses, em que a criança mais
nova tinha 4 anos e o mais velho 17. Com eles aprendi o significado desta
passagem dos atos: “Ninguém chamava seu ao que lhe pertencia, mas entre eles
tudo era comum.” (...) “distribuía-se, então, a cada um, conforme a necessidade
que tivesse”. Havia muito pouco. Eu passei fome pela primeira vez na minha
vida. Experimentei que quando temos fome, só pensamos em comida e não
conseguimos fazer mais nada. A comida era à conta para as 50 crianças e jovens
e muitas vezes era apenas arroz, enfeitada com um bocadinho de legumes. Mas
eles sabiam o que era viver em comunidade e partilhar. Fomos visitar uma
família pobre e depois estávamos no final do dia a ver como poderíamos ajudar
essa família. E os miúdos propuseram e todos concordaram dar 2 dos 5 ovos que
tínhamos para a refeição do dia seguinte para aquela família. Nós só tínhamos 5
ovos para 50 miúdos mais 4 de nós, mas assim seriam apenas 3 ovos mexidos para
54 pessoas.
Fiquei cara a cara com a pobreza crua e suja e injusta. Uma
caminhada de desprendimento foi-me dando a ilusão de “ser pobre” mas só quando
faltou o pão da boca, o conforto de uma casa limpa e uma despensa para
providenciar o necessário, desejei ser pão e partir-me para os saciar, mas nem
a mim me alimentava distraída por um estômago vazio e uma mente a exigir-me
comida. Também de pão vive o homem... mas sabe a pouco!
E Deus deu-me irmãos, que nem metro e meio têm, que não sabem
o dia em que nasceram, que esqueceram o cheiro da sua terra e que entre a mãe
biológica e as muitas “mães” de criação brincam apanhando frutos verdes para
enganar a fome. O prato de arroz é garantido mas não sacia quem de tanto
precisa.
Os irmãos do ISMAEK (Instituto Secular Maun-Alin iha Kristu -
Irmãos em Cristo) ali vivem, servindo e retirando as crianças de famílias
desestruturadas, tentando dar-lhes uma família e fazê-los sentirem-se irmãos.
Recordo uma menina, a quem vou chamar Joana, com 9 anos, que desde o nascimento
a destinaram a casar com um primo e a quem uma tia, para impedir que fosse
viver e consumar este casamento aos 7 anos, a trouxe e a colocou nas mãos dos
irmãos. Há dois anos que não vai a casa, que não abraça a sua mãe, nem brinca
com os seus muitos irmãos. É com lágrimas nos olhos que pede para ir a casa. A
palavra que ela sempre dizia, quando nos sentávamos a brincar ou a estudar, era
um “obrigado”, o mais sincero que alguma vez ouvi, acompanhado de um abraço, o
mais doce que recebi.
Diz Christian Bobin, num livro muito especial com o título
“Ressuscitar”: “Tudo o que sei do céu me vem do espanto que experimento (...) à
luz de uma palavra ou um gesto tão puros que me revelam bruscamente que nada no
mundo poderia ser a sua origem.“ (p. 29)
À luz de uma palavra, a vida pode ser transformada. E nós podemos
ser instrumentos dessa alegria e paz. Na missão em Timor, conheci o padre Chris
Riley. Ele foi com um grupo de jovens fazer uma experiência missionária em
Laleia, Timor-Leste, e tive o privilégio de conhecer um santo pouco
convencional que não se esforçando por agradar, a sua história nunca mais se
libertou da minha mente nem das minhas orações. Na Austrália, donde é natural,
é uma figura pública e a sua organização, Youth off the streets (“Jovens fora
da rua”), tem um investimento de milhões de dólares em quintas residenciais, um
centro de desintoxicação, carrinhas para alimentação, escolas espalhadas por
toda a Austrália, programas de acompanhamento para crianças com histórias de
negligência e abuso em todos os bairros mais problemáticos. Mais de 60,000
crianças passaram já por todos estes projetos.
Uma noite, enquanto planeávamos o dia seguinte não hesitei em
perguntar-lhe como é que este projeto tinha começado. E ele contou-nos. Um fim
de tarde, enquanto regressava a casa, um jovem encostou-lhe uma navalha às
costas e obrigou-o a entrar num táxi. Quando o jovem chegou ao destino,
empurrou-o, bateu-lhe e fugiu, deixando-o sozinho numa rua abandonada. O padre
Chris, estava bastante longe e regressou a casa a pé. Durante a noite, não se
conseguia esquecer deste jovem. No dia seguinte, voltou àquela rua para ver se
o encontrava. E nada! Depois foi num jornal que viu a notícia de um jovem que
tinha sido preso numa rua próxima. O padre Chris foi à prisão ter com ele e
disse-lhe: “Eu acredito em ti! Acredito que podes fazer muitas coisas boas e
belas neste mundo. E eu estou aqui para te ajudar!”. E aqui começou o “youth
off the streets”, pois como diz o padre Chris. “Não existem jovens maus só
circunstâncias más”. A partir daí, a vida do padre Chris mudou. Deixou o
trabalho na escola salesiana, em 1991, e mudou-se para uma auto-caravana para
poder trabalhar a tempo inteiro nas ruas. Pouco tempo depois, conseguiu fundos
para conseguir um local para acolher crianças sem-abrigo. Gradualmente, o seu
trabalho com crianças com problemas – pais abusivos, vítimas de violência
sexual, consumo de álcool e drogas – tornou-se um sucesso. O padre Chris refere
que “Partilhar uma refeição, ter alguém com quem conversar e sentir-se seguro -
são coisas que os jovens realmente valorizam. São os pequenos milagres que
fazem a vida valer a pena.”; “Temos de ter a coragem de exigir grandeza dos
nossos jovens”. E a nós? Onde é que a Palavra nos conduz?
Temos apenas de, como diz Bobin, de “tirá-la dos livros onde
definha para a fazer entrar no coração, único local onde poderia viver” (49). A
missão é colocar a Palavra no coração pois “talvez nada chegue a dar quem não
oferece o próprio coração” (p. 82). A todos nós missionários, chamados a ser
palavra de Deus viva e atuante hoje, missão concedida por um Deus que faz tudo
para nos conseguir tocar. “(53) e que sabe que “A missão é a nossa identidade
em ação” e que, tal como diz o Papa Francisco na exortação apostólica pós
sinodal “Cristo vive”, primeiro temos de abraçar para depois transformar.
Em Timor me entregaste a minha missão: ser um
pedacinho de pão Teu, pão do céu e da terra, ser palavra e pão, ser Missão!»Texto - retirado do site dos Franciscanos Capuchinhos, https://capuchinhos.org, em 06.01.2020;
Imagem: retirada da "Google Imagens" em 06.01.2020;
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