[Sugestão de]
Leitura: "O elogio
da imperfeição - O caminho da fragilidade"
«O Cristianismo tornou-se frequentemente uma religião a
"tender para o perfecionismo moral" (confundindo-o com a santidade),
como se fosse a única condição para obter o amor de Deus e os seus dons. Mas o
único dom que Deus poderá conceder-nos não será senão Ele próprio, quer dizer,
amor, perdão e misericórdia.»
Este é o ponto de partida para o livro "O elogio da
imperfeição - O caminho da fragilidade", de Paolo Scquizzato, que integra
os mais recentes lançamentos da Paulinas Editora.
«A nossa salvação chegará, não quando tivermos derrotado as
nossas misérias, mas quando começarmos a viver a verdade de nós mesmos, isto é,
quando começarmos a aceitar-nos com as nossas fragilidades. Nós somos as nossas
imperfeições, as nossas feridas e os nossos pecados», assinala a sinopse.
"A riqueza do limite". "Hino à
fragilidade", "Basta-nos a sua graça" e "A lógica da
debilidade" são os capítulos que compõem a primeira parte do livro,
seguida da secção "À escuta do Evangelho", que após a introdução
medita sobre duas narrativas evangélicas: "O cego de nascença" e
"A filha de Jairo e a hemorroíssa".
É do
primeiro capítulo que extraímos o excerto que oferecemos aos nossos leitores.
A riqueza do limite
In "O
elogio da imperfeição"
Transformar
as feridas em pérolas
A pérola é
esplêndida e preciosa.
Nasce da
dor.
Nasce quando uma ostra é ferida.
Nasce quando uma ostra é ferida.
Quando um corpo estranho – uma impureza, um grãozinho de
areia – penetra no seu interior e a habita, a concha começa a produzir uma
substância (a madrepérola) com que o cobre para proteger o seu corpo invadido.
No fim, ter-se-á formado uma bela pérola, brilhante e valiosa. Se não for
ferida, a ostra nunca poderá produzir pérolas, porque a pérola é uma ferida
cicatrizada.
Quantas feridas temos dentro de nós, quantas substâncias
impuras nos habitam? Limites, debilidades, pecados, incapacidades,
inadequações, fragilidades psicofísicas... E quantas feridas nas nossas
relações interpessoais? Para nós, a questão fundamental será sempre esta: o que
fazemos com elas? Como as vivemos?
A única via de saída é envolver as nossas feridas com aquela
substância cicatrizante que é o amor; a única possibilidade de crescer e de ver
as nossas impurezas tornarem-se pérolas.
A alternativa é cultivar ressentimentos contra os outros
pelas suas debilidades e atormentarmo-nos a nós mesmos com permanentes e
devastadores sentimentos de culpa por aquilo que não deveríamos ser e por aquilo
que não deveríamos sentir.
A ideia que frequentemente trazemos em nós é que deveríamos
ser de outro modo; que, para sermos aceites por nós próprios, pelos outros e
por Deus, não deveríamos ter dentro de nós aquelas impurezas indecorosas.
Quereríamos ser simples «ostras vazias», sem corpos estranhos de vários
géneros, «puros», em suma. Mas isto é impossível, e, mesmo que nos
considerássemos tais, isso não significaria que nunca fomos feri dos, mas apenas
que não o reconhecemos, que não conseguimos aceitá-lo, que não soubemos
perdoar-nos e perdoar, compreender e transformar a dor em amor; e seríamos
simplesmente pobres e estaríamos terrivelmente vazios.
É fundamental chegar a compreender a importância – em nós e
fora de nós, nas nossas relações – da presença dos limites, das feridas, das
zonas de sombra; perceber, à luz da mensagem evangélica, que tudo o que do
nosso e do mundo interior alheio, está marcado pela sombra e pelo limite, é a
nossa única riqueza, e que é precisamente então que é possível fazer a
experiência da nossa salvação. Em suma, que não há nada dentro de nós que
mereça ser atirado fora.
«Tudo pode ser transformado em graça, até o pecado, dizia
Agostinho. Até a nossa sexualidade ferida e as nossas neuroses, acrescentaremos
nós, desde que façamos delas uma ocasião para nos abrirmos, para acolhermos e
compartilharmos. Por isso, erraríamos se as desprezássemos. São matéria de
santidade» (André Daigneault, La via dell’imperfezione, Cantalupa, Effatà
Editrice, 2012, p. 17).
Se começamos a raciocinar deste modo, quer dizer que se
realizou em nós a verdadeira conversão, a metanoia evangélica; tornámos nosso
um pensamento «outro», diferente, ou, então, chegamos finalmente a já não
pensar que a «pureza», a ausência de debilidade e de pecado, é a nossa
salvação, bem pelo contrário! A salvação, a santidade, consistirá finalmente em
nos apercebermos da nossa verdade, ou seja, de que estamos feridos, somos
limitados, frágeis; mas, ao mesmo tempo, objeto do amor «louco» de Deus que –
precisamente porque somos feitos assim – vem visitar-nos e habitar-nos.
«A santidade
tem tão pouco a ver com a perfeição que é o seu oposto absoluto. A perfeição é
a irmã mais nova mimada da morte. A santidade é o gosto forte pela vida tal
como é – uma capacidade infantil de alegrar-se com aquilo que é, sem pedir nada
mais» (Christian Bobin).
O Evangelho revela continuamente que tudo o que tem o sabor
do limite também encerra em si a possibilidade da sua realização.
Jesus diz a cada um de nós: «Ama aquela parte de ti que
gostarias de não ter. Começa por envolvê-la com o amor e, no fim, verificarás
que tens em ti uma pérola preciosa, porque na ferida reconhecida, envolta pelo
amor, experimentarás o tesouro que trazes dentro de ti.»
Com insistência, o Evangelho exorta-nos a «pôr no meio» o
nosso limite e a nossa fragilidade (cf. o homem com a mão paralisada, Mc 3,3 e
Lc 6,8; o paralítico, Lc 5,19). Colocar no meio as nossas zonas de sombra quer
dizer reconhecer, de um lado, a sua existência e, do outro, que elas, diante da
ressurreição de Cristo, não são a última palavra sobre a nossa humanidade.
Devemos
decidir se optamos pela força ou pela debilidade.
A nossa insuficiência, a nossa debilidade, é uma força maior
do que qualquer outra, porque tem a própria força de Deus: «Quando sou fraco,
então é que sou forte» (2 Cor 12,10).
Esta verdade deveria voltar ao centro do nosso viver cristão.
Como já dissemos, nos Evangelhos, no centro da cena está sempre o homem na sua
doença, enquanto ser ferido, débil e frágil. Por isso, também no centro da
assembleia (da comunidade, da nossa família, da Igreja...), no centro do nosso
viver cristão, não sobressaem a força, o «faça-o você mesmo», a observância
obsessiva dos santos preceitos, o sermos moralmente irrepreensíveis..., mas
está simplesmente a nossa fraqueza.
Reconciliar-se
com o limite
Devemos recuperar a realidade do limite e reconciliarmo-nos
com ela. Só existimos enquanto limitados. Nascemos e morreremos, pelo que somos
limitados no tempo. Temos um corpo, cujos contornos definem a nossa fronteira
com o mundo circunstante, e isso diz-nos que somos limitados no espaço.
Quereríamos ser capazes de amar mais, relacionarmo-nos de maneira diferente,
mas todos os dias fazemos a experiência de que «somos feitos assim» (cada um
tem a sua história, a sua estrutura psicológica, o seu carácter, as suas
doenças interiores...): somos limitados no amor.
Para não falar no limite do outro que, enquanto diferente de
nós, não nos permite ser o que quereríamos, e, por isso, percebemo-lo como
limitador. A alteridade, dentro e fora de nós, frustra o nosso desejo de «como
deveriam ser as coisas»; mas existe e não podemos ignorá-la. A alteridade,
quando nos causa medo, assume o nome de inimigo. E o inimigo é sempre para
combater e, possivelmente, destruir.
Hoje, em geral, entendemos o limite de maneira negativa:
representa para nós constrição, impedimento e sufocamento, enquanto para os
gregos antigos permitia estabelecer os contornos do bem e do mal. O vício e o
pecado estavam no excesso; a virtude e o bem tinham que ver com o meio, ou
seja, um range [gama] – diríamos hoje – situada entre os limites extremos.
De facto, no horizonte ético dos antigos, o erro mais grave
era a hybris, a desmesura, o excesso que ultrapassa os limites. Hoje, pelo
contrário, a palavra limite e tudo aquilo que tem o sabor de limitativo soa a
coerção e, por isso, como totalmente negativo: sabe a dependência,
inferioridade, falta, portanto, a alguma coisa de que é preciso livrarmo-nos o
mais depressa possível.
Hoje, tudo deve ser off limits, desde a investigação
científica ao desporto, passando por todos os aspetos do quotidiano: os
contratos são anuláveis, as relações de trabalho são efémeras e substituíveis,
a palavra dada e a promessa feita são irrelevantes; também se ultrapassou o
limite da vergonha, pelo que o réu já não precisa de se arrepender ou de pedir
desculpa. As novas tecnologias e os novos media comprimiram de tal maneira o
tempo e inutilizaram tanto o espaço que conduziram à rejeição da ideia do fim e,
consequentemente, do confim.
Daqui se conclui que o limite último da vida, ou seja, a
morte, confim com o mistério de fim, já não pode ser aceite. O limite da morte
é anacrónico e absurdo; por isso, é de algum modo imperioso que sejamos
imortais, infinitos.
Depois, como já vimos, há a experiência do limite que nos é
imposta pelo outro, pela qual percebemos o tu como realidade lesiva da nossa
liberdade, do facto de termos razão, das nossas ideias, do nosso sucesso, do
facto de sermos «os primeiros», se não até os únicos.
Tudo isto é esplendidamente contado no episódio do Génesis,
onde Caim, filho único, perde o seu status com a chegada de Abel, o segundo
filho. Para ele, voltar a ser o único, não tem outra solução a não ser eliminar
o antagonista (cf. Gn 4,1-8).
Etimologicamente, eliminar quer dizer expulsar (o
e-privativo) da soleira da porta (limen, liminis): pôr/atirar para fora de
casa, da sua história, o outro, que não permite que se seja o que se quereria,
possibilitando o nosso ser ilimitado.
Da negação do limite a uma vida inautêntica
Christian Bobin escreve:
«Nunca me empolguei muito por exames. Não que fosse mau
aluno, como sói dizer-se. Quando adivinhava o que se esperava de mim, então eu
dava-o. Fazia da arte de aprender uma arte deveras subtil da oferta; é preciso
dar ao outro o que ele espera de nós, e não o que desejamos para nós. O que se
espera de nós, não aquilo que somos.
Porque o que ele espera nunca é o que nós somos, é sempre
outra coisa. Portanto, aprendi muito depressa a dar aquilo que não tinha»
(Elogio do nada).
O homem é um esplêndido ator. O drama que representa é viver
segundo aquilo que os outros esperam dele, e não o facto de ser realmente capaz
de realizar a sua história, quer dizer, a verdade.
O problema é que o outro espera sempre de nós algo diferente
do que somos; isto comporta, inevitavelmente, que demos e manifestemos sempre
aquilo que não temos e que, afinal, não somos. A questão será sempre parecermos
aos outros que somos perfeitos, não manchados por limites ou fragilidades, isto
é, que vivamos através daquelas performances que eles esperam de nós e que nos
tornam bem aceites, bem-queridos. Amados.
Aprendemos isto desde pequeninos em relação aos nossos pais,
para, depois, vivê-lo com os professores, os educadores, os empregadores, o
nosso partner, com nós próprios e com Deus.
Mas não se pode viver uma vida assim; não se pode resistir a
um esforço continuado de nos mostrarmos adequados, performantes, perfeitos,
para tranquilizar os outros a fim de lhes dar prazer.
«Um princípio basilar para o nosso percurso de vida é: «Não
te deixes condicionar pelos outros. Não permitas que os outros te prescrevam a
estrada que deves percorrer. Vai pela tua estrada. Torna-te tu próprio.
Descobre a forma autêntica e incontaminada que o Senhor te atribuiu. E tem a
coragem de viver o aspeto originário de ti mesmo. Quem eras antes de os teus
pais te educarem? Quem eras em Deus, antes de nasceres?» Lembra-te do teu
núcleo divino. Se entrares em contacto com ele, poderás percorrer livremente a
tua estrada (Anselm Grün, O livro da arte de viver).
O nosso drama de cristãos é desejarmos ser performantes, até
diante de Deus. Fizemos do Cristianismo a religião do «tender para o
perfecionismo moral» – confundindo-o com a santidade –, como se fosse a única
condição para obter o amor de Deus e os seus dons. Mas o único dom que Deus
poderá conceder-nos não será senão Ele próprio, quer dizer, amor, perdão e
misericórdia. E Deus só me poderá dar tudo isto quando eu me reconhecer
necessitado de amor, pecador e pobre.
«A santidade que Jesus nos propõe não é de ordem natural, mas
é uma santidade que devemos acolher na nossa pobreza. Jesus veio para os
pecadores e para os débeis, e não para os fortes que estão bem. O esquema de
perfeição humana baseado na vontade e na ascese segue um traçado exatamente
oposto ao da santidade que Jesus nos propõe no Evangelho» (André Daigneault, La
via dell’imperfezione [A vida da imperfeição], cit., p. 24)
A nossa salvação chegará, não quando tivermos derrotado as
nossas misérias, mas quando começarmos a viver a verdade de nós mesmos, isto é,
quando começarmos a aceitar-nos com as nossas fragilidades. Nós somos as nossas
imperfeições, as nossas feridas e os nossos pecados. Não somos outra coisa,
embora talvez o desejemos, mesmo que nos escondamos atrás das máscaras e
recitemos guiões que não nos pertencem.
O Evangelho é uma escola de realismo. Jesus veio arrancar-nos
as máscaras de histriões para que, finalmente, estejamos livres para ser nós
próprios, mesmo que nos custe ou tenhamos de parecer inadequados e loucos aos
olhos do mundo.
«Perguntas-me de que modo me tornei louco. Aconteceu assim:
um dia, muito antes que muitos fossem gerados, acordei de um sono profundo e
apercebi-me de que me tinham sido roubadas todas as máscaras – as sete máscaras
que em sete vidas eu tinha forjado e colocado –, e sem máscara corri pelas ruas
cheias de gente, gritando: "Ladrões, ladrões, malditos ladrões!"
Riam-se de mim homens e mulheres, e alguns precipitaram-se para as suas casas
com medo de mim. E, quando cheguei à praça do mercado, um jovem gritou, do
telhado de uma casa: "É um louco!" Virei os olhos para cima para o
ver; pela primeira vez, o sol me beijou o rosto, o meu rosto nu. O sol beijava
pela primeira vez o meu rosto descoberto e a minha alma incendiava-se de amor
pelo sol, e já não chorava as minhas máscaras. E, como se estivesse em transe,
gritei: "Abençoados, abençoados sejam os ladrões que roubaram as minhas
máscaras!" Foi assim que me tornei louco. E na loucura encontrei a
liberdade e a salvação: fui libertado da solidão e salvo pela compreensão,
porque aqueles que nos compreendem dominam sempre alguma coisa em nós» (Khalil
Gibran, O louco).
Jesus veio libertar-nos do medo de não estarmos à altura
diante de quem quer que seja: nós próprios, o outro, Deus. Adão, o homem de
sempre, escondeu-se por causa disto. Estava nu e teve medo. Diante de Eva
defendeu-se, acusando-a; diante de Deus, escondeu-se no abismo.
O Evangelho é uma contínua memória da encarnação; o Deus que
se pôs ao nosso lado não veio tirar-nos a inadequação, a fragilidade, o limite,
mas libertar-nos do medo que tudo isto exerce em nós, para que não sejamos esborrachados
sob este peso enorme.
É preciso restituir às nossas feridas o direito de cidadania!
A relação com nós próprios e com a nossa vida quotidiana
(social, familiar e relacional) tornar-se-á «paradisíaca» quando conseguirmos
acolher-nos e amar-nos, não de malgrado, mas através de todas as nossas feridas
e das nossas debilidades.
Uma comunidade – seja ela civil, familiar ou religiosa – será
um paraíso, não quando todos forem perfeitos e não houver tensões, mas quando
cada um puder viver a liberdade de tirar a máscara porque se sente aceite e
amado tal como é; quando limites, pecados, feridas e traições já não forem
ocasiões de divisão e de maldições, mas lugares onde se pode amar e perdoar.
Publicado em 24.05.2016+”
Retirado do Site do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura ,
https://www.snpcultura.org , em 16.02.2019.
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