sábado, 16 de fevereiro de 2019

O elogio da imperfeição - O caminho da fragilidade



[Sugestão de] Leitura: "O elogio da imperfeição - O caminho da fragilidade"
«O Cristianismo tornou-se frequentemente uma religião a "tender para o perfecionismo moral" (confundindo-o com a santidade), como se fosse a única condição para obter o amor de Deus e os seus dons. Mas o único dom que Deus poderá conceder-nos não será senão Ele próprio, quer dizer, amor, perdão e misericórdia.»
Este é o ponto de partida para o livro "O elogio da imperfeição - O caminho da fragilidade", de Paolo Scquizzato, que integra os mais recentes lançamentos da Paulinas Editora.
«A nossa salvação chegará, não quando tivermos derrotado as nossas misérias, mas quando começarmos a viver a verdade de nós mesmos, isto é, quando começarmos a aceitar-nos com as nossas fragilidades. Nós somos as nossas imperfeições, as nossas feridas e os nossos pecados», assinala a sinopse.
"A riqueza do limite". "Hino à fragilidade", "Basta-nos a sua graça" e "A lógica da debilidade" são os capítulos que compõem a primeira parte do livro, seguida da secção "À escuta do Evangelho", que após a introdução medita sobre duas narrativas evangélicas: "O cego de nascença" e "A filha de Jairo e a hemorroíssa".
É do primeiro capítulo que extraímos o excerto que oferecemos aos nossos leitores.

A riqueza do limite
In "O elogio da imperfeição"
Transformar as feridas em pérolas
A pérola é esplêndida e preciosa.
Nasce da dor.

Nasce quando uma ostra é ferida.
Quando um corpo estranho – uma impureza, um grãozinho de areia – penetra no seu interior e a habita, a concha começa a produzir uma substância (a madrepérola) com que o cobre para proteger o seu corpo invadido. No fim, ter-se-á formado uma bela pérola, brilhante e valiosa. Se não for ferida, a ostra nunca poderá produzir pérolas, porque a pérola é uma ferida cicatrizada.
Quantas feridas temos dentro de nós, quantas substâncias impuras nos habitam? Limites, debilidades, pecados, incapacidades, inadequações, fragilidades psicofísicas... E quantas feridas nas nossas relações interpessoais? Para nós, a questão fundamental será sempre esta: o que fazemos com elas? Como as vivemos?
A única via de saída é envolver as nossas feridas com aquela substância cicatrizante que é o amor; a única possibilidade de crescer e de ver as nossas impurezas tornarem-se pérolas.
A alternativa é cultivar ressentimentos contra os outros pelas suas debilidades e atormentarmo-nos a nós mesmos com permanentes e devastadores sentimentos de culpa por aquilo que não deveríamos ser e por aquilo que não deveríamos sentir.
A ideia que frequentemente trazemos em nós é que deveríamos ser de outro modo; que, para sermos aceites por nós próprios, pelos outros e por Deus, não deveríamos ter dentro de nós aquelas impurezas indecorosas. Quereríamos ser simples «ostras vazias», sem corpos estranhos de vários géneros, «puros», em suma. Mas isto é impossível, e, mesmo que nos considerássemos tais, isso não significaria que nunca fomos feri dos, mas apenas que não o reconhecemos, que não conseguimos aceitá-lo, que não soubemos perdoar-nos e perdoar, compreender e transformar a dor em amor; e seríamos simplesmente pobres e estaríamos terrivelmente vazios.
É fundamental chegar a compreender a importância – em nós e fora de nós, nas nossas relações – da presença dos limites, das feridas, das zonas de sombra; perceber, à luz da mensagem evangélica, que tudo o que do nosso e do mundo interior alheio, está marcado pela sombra e pelo limite, é a nossa única riqueza, e que é precisamente então que é possível fazer a experiência da nossa salvação. Em suma, que não há nada dentro de nós que mereça ser atirado fora.
«Tudo pode ser transformado em graça, até o pecado, dizia Agostinho. Até a nossa sexualidade ferida e as nossas neuroses, acrescentaremos nós, desde que façamos delas uma ocasião para nos abrirmos, para acolhermos e compartilharmos. Por isso, erraríamos se as desprezássemos. São matéria de santidade» (André Daigneault, La via dell’imperfezione, Cantalupa, Effatà Editrice, 2012, p. 17).
Se começamos a raciocinar deste modo, quer dizer que se realizou em nós a verdadeira conversão, a metanoia evangélica; tornámos nosso um pensamento «outro», diferente, ou, então, chegamos finalmente a já não pensar que a «pureza», a ausência de debilidade e de pecado, é a nossa salvação, bem pelo contrário! A salvação, a santidade, consistirá finalmente em nos apercebermos da nossa verdade, ou seja, de que estamos feridos, somos limitados, frágeis; mas, ao mesmo tempo, objeto do amor «louco» de Deus que – precisamente porque somos feitos assim – vem visitar-nos e habitar-nos.
«A santidade tem tão pouco a ver com a perfeição que é o seu oposto absoluto. A perfeição é a irmã mais nova mimada da morte. A santidade é o gosto forte pela vida tal como é – uma capacidade infantil de alegrar-se com aquilo que é, sem pedir nada mais» (Christian Bobin).
O Evangelho revela continuamente que tudo o que tem o sabor do limite também encerra em si a possibilidade da sua realização.
Jesus diz a cada um de nós: «Ama aquela parte de ti que gostarias de não ter. Começa por envolvê-la com o amor e, no fim, verificarás que tens em ti uma pérola preciosa, porque na ferida reconhecida, envolta pelo amor, experimentarás o tesouro que trazes dentro de ti.»
Com insistência, o Evangelho exorta-nos a «pôr no meio» o nosso limite e a nossa fragilidade (cf. o homem com a mão paralisada, Mc 3,3 e Lc 6,8; o paralítico, Lc 5,19). Colocar no meio as nossas zonas de sombra quer dizer reconhecer, de um lado, a sua existência e, do outro, que elas, diante da ressurreição de Cristo, não são a última palavra sobre a nossa humanidade.
Devemos decidir se optamos pela força ou pela debilidade.
A nossa insuficiência, a nossa debilidade, é uma força maior do que qualquer outra, porque tem a própria força de Deus: «Quando sou fraco, então é que sou forte» (2 Cor 12,10).
Esta verdade deveria voltar ao centro do nosso viver cristão. Como já dissemos, nos Evangelhos, no centro da cena está sempre o homem na sua doença, enquanto ser ferido, débil e frágil. Por isso, também no centro da assembleia (da comunidade, da nossa família, da Igreja...), no centro do nosso viver cristão, não sobressaem a força, o «faça-o você mesmo», a observância obsessiva dos santos preceitos, o sermos moralmente irrepreensíveis..., mas está simplesmente a nossa fraqueza.
Reconciliar-se com o limite
Devemos recuperar a realidade do limite e reconciliarmo-nos com ela. Só existimos enquanto limitados. Nascemos e morreremos, pelo que somos limitados no tempo. Temos um corpo, cujos contornos definem a nossa fronteira com o mundo circunstante, e isso diz-nos que somos limitados no espaço. Quereríamos ser capazes de amar mais, relacionarmo-nos de maneira diferente, mas todos os dias fazemos a experiência de que «somos feitos assim» (cada um tem a sua história, a sua estrutura psicológica, o seu carácter, as suas doenças interiores...): somos limitados no amor.
Para não falar no limite do outro que, enquanto diferente de nós, não nos permite ser o que quereríamos, e, por isso, percebemo-lo como limitador. A alteridade, dentro e fora de nós, frustra o nosso desejo de «como deveriam ser as coisas»; mas existe e não podemos ignorá-la. A alteridade, quando nos causa medo, assume o nome de inimigo. E o inimigo é sempre para combater e, possivelmente, destruir.
Hoje, em geral, entendemos o limite de maneira negativa: representa para nós constrição, impedimento e sufocamento, enquanto para os gregos antigos permitia estabelecer os contornos do bem e do mal. O vício e o pecado estavam no excesso; a virtude e o bem tinham que ver com o meio, ou seja, um range [gama] – diríamos hoje – situada entre os limites extremos.
De facto, no horizonte ético dos antigos, o erro mais grave era a hybris, a desmesura, o excesso que ultrapassa os limites. Hoje, pelo contrário, a palavra limite e tudo aquilo que tem o sabor de limitativo soa a coerção e, por isso, como totalmente negativo: sabe a dependência, inferioridade, falta, portanto, a alguma coisa de que é preciso livrarmo-nos o mais depressa possível.
Hoje, tudo deve ser off limits, desde a investigação científica ao desporto, passando por todos os aspetos do quotidiano: os contratos são anuláveis, as relações de trabalho são efémeras e substituíveis, a palavra dada e a promessa feita são irrelevantes; também se ultrapassou o limite da vergonha, pelo que o réu já não precisa de se arrepender ou de pedir desculpa. As novas tecnologias e os novos media comprimiram de tal maneira o tempo e inutilizaram tanto o espaço que conduziram à rejeição da ideia do fim e, consequentemente, do confim.
Daqui se conclui que o limite último da vida, ou seja, a morte, confim com o mistério de fim, já não pode ser aceite. O limite da morte é anacrónico e absurdo; por isso, é de algum modo imperioso que sejamos imortais, infinitos.
Depois, como já vimos, há a experiência do limite que nos é imposta pelo outro, pela qual percebemos o tu como realidade lesiva da nossa liberdade, do facto de termos razão, das nossas ideias, do nosso sucesso, do facto de sermos «os primeiros», se não até os únicos.
Tudo isto é esplendidamente contado no episódio do Génesis, onde Caim, filho único, perde o seu status com a chegada de Abel, o segundo filho. Para ele, voltar a ser o único, não tem outra solução a não ser eliminar o antagonista (cf. Gn 4,1-8).
Etimologicamente, eliminar quer dizer expulsar (o e-privativo) da soleira da porta (limen, liminis): pôr/atirar para fora de casa, da sua história, o outro, que não permite que se seja o que se quereria, possibilitando o nosso ser ilimitado.
Da negação do limite a uma vida inautêntica
Christian Bobin escreve:
«Nunca me empolguei muito por exames. Não que fosse mau aluno, como sói dizer-se. Quando adivinhava o que se esperava de mim, então eu dava-o. Fazia da arte de aprender uma arte deveras subtil da oferta; é preciso dar ao outro o que ele espera de nós, e não o que desejamos para nós. O que se espera de nós, não aquilo que somos.
Porque o que ele espera nunca é o que nós somos, é sempre outra coisa. Portanto, aprendi muito depressa a dar aquilo que não tinha» (Elogio do nada).
O homem é um esplêndido ator. O drama que representa é viver segundo aquilo que os outros esperam dele, e não o facto de ser realmente capaz de realizar a sua história, quer dizer, a verdade.
O problema é que o outro espera sempre de nós algo diferente do que somos; isto comporta, inevitavelmente, que demos e manifestemos sempre aquilo que não temos e que, afinal, não somos. A questão será sempre parecermos aos outros que somos perfeitos, não manchados por limites ou fragilidades, isto é, que vivamos através daquelas performances que eles esperam de nós e que nos tornam bem aceites, bem-queridos. Amados.
Aprendemos isto desde pequeninos em relação aos nossos pais, para, depois, vivê-lo com os professores, os educadores, os empregadores, o nosso partner, com nós próprios e com Deus.
Mas não se pode viver uma vida assim; não se pode resistir a um esforço continuado de nos mostrarmos adequados, performantes, perfeitos, para tranquilizar os outros a fim de lhes dar prazer.
«Um princípio basilar para o nosso percurso de vida é: «Não te deixes condicionar pelos outros. Não permitas que os outros te prescrevam a estrada que deves percorrer. Vai pela tua estrada. Torna-te tu próprio. Descobre a forma autêntica e incontaminada que o Senhor te atribuiu. E tem a coragem de viver o aspeto originário de ti mesmo. Quem eras antes de os teus pais te educarem? Quem eras em Deus, antes de nasceres?» Lembra-te do teu núcleo divino. Se entrares em contacto com ele, poderás percorrer livremente a tua estrada (Anselm Grün, O livro da arte de viver).
O nosso drama de cristãos é desejarmos ser performantes, até diante de Deus. Fizemos do Cristianismo a religião do «tender para o perfecionismo moral» – confundindo-o com a santidade –, como se fosse a única condição para obter o amor de Deus e os seus dons. Mas o único dom que Deus poderá conceder-nos não será senão Ele próprio, quer dizer, amor, perdão e misericórdia. E Deus só me poderá dar tudo isto quando eu me reconhecer necessitado de amor, pecador e pobre.
«A santidade que Jesus nos propõe não é de ordem natural, mas é uma santidade que devemos acolher na nossa pobreza. Jesus veio para os pecadores e para os débeis, e não para os fortes que estão bem. O esquema de perfeição humana baseado na vontade e na ascese segue um traçado exatamente oposto ao da santidade que Jesus nos propõe no Evangelho» (André Daigneault, La via dell’imperfezione [A vida da imperfeição], cit., p. 24)
A nossa salvação chegará, não quando tivermos derrotado as nossas misérias, mas quando começarmos a viver a verdade de nós mesmos, isto é, quando começarmos a aceitar-nos com as nossas fragilidades. Nós somos as nossas imperfeições, as nossas feridas e os nossos pecados. Não somos outra coisa, embora talvez o desejemos, mesmo que nos escondamos atrás das máscaras e recitemos guiões que não nos pertencem.
O Evangelho é uma escola de realismo. Jesus veio arrancar-nos as máscaras de histriões para que, finalmente, estejamos livres para ser nós próprios, mesmo que nos custe ou tenhamos de parecer inadequados e loucos aos olhos do mundo.
«Perguntas-me de que modo me tornei louco. Aconteceu assim: um dia, muito antes que muitos fossem gerados, acordei de um sono profundo e apercebi-me de que me tinham sido roubadas todas as máscaras – as sete máscaras que em sete vidas eu tinha forjado e colocado –, e sem máscara corri pelas ruas cheias de gente, gritando: "Ladrões, ladrões, malditos ladrões!" Riam-se de mim homens e mulheres, e alguns precipitaram-se para as suas casas com medo de mim. E, quando cheguei à praça do mercado, um jovem gritou, do telhado de uma casa: "É um louco!" Virei os olhos para cima para o ver; pela primeira vez, o sol me beijou o rosto, o meu rosto nu. O sol beijava pela primeira vez o meu rosto descoberto e a minha alma incendiava-se de amor pelo sol, e já não chorava as minhas máscaras. E, como se estivesse em transe, gritei: "Abençoados, abençoados sejam os ladrões que roubaram as minhas máscaras!" Foi assim que me tornei louco. E na loucura encontrei a liberdade e a salvação: fui libertado da solidão e salvo pela compreensão, porque aqueles que nos compreendem dominam sempre alguma coisa em nós» (Khalil Gibran, O louco).
Jesus veio libertar-nos do medo de não estarmos à altura diante de quem quer que seja: nós próprios, o outro, Deus. Adão, o homem de sempre, escondeu-se por causa disto. Estava nu e teve medo. Diante de Eva defendeu-se, acusando-a; diante de Deus, escondeu-se no abismo.
O Evangelho é uma contínua memória da encarnação; o Deus que se pôs ao nosso lado não veio tirar-nos a inadequação, a fragilidade, o limite, mas libertar-nos do medo que tudo isto exerce em nós, para que não sejamos esborrachados sob este peso enorme.
É preciso restituir às nossas feridas o direito de cidadania!
A relação com nós próprios e com a nossa vida quotidiana (social, familiar e relacional) tornar-se-á «paradisíaca» quando conseguirmos acolher-nos e amar-nos, não de malgrado, mas através de todas as nossas feridas e das nossas debilidades.
Uma comunidade – seja ela civil, familiar ou religiosa – será um paraíso, não quando todos forem perfeitos e não houver tensões, mas quando cada um puder viver a liberdade de tirar a máscara porque se sente aceite e amado tal como é; quando limites, pecados, feridas e traições já não forem ocasiões de divisão e de maldições, mas lugares onde se pode amar e perdoar.
Publicado em 24.05.2016+”

Retirado do Site do  Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura , https://www.snpcultura.org , em 16.02.2019.

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