«Jesus Cristo, o rosto da misericórdia do Pai
Domingo Montero
«Muitas vezes e de muitos modos,
falou Deus aos nossos pais, nos tempos antigos,
por meio dos profetas. Nestes dias,
que são os últimos, Deus falou-nos no Filho»
(Heb 1,1-2). Estas palavras
introdutórias da carta aos Hebreus são
Perfeitamente
aplicáveis ao tema da misericórdia divina.
Apesar
da densidade e intensidade com que o rosto misericordioso de Deus aparece
perfilado no AT., estávamos ainda no momento do provisório e fragmentário. É em
Cristo, «resplendor da sua glória e imagem fiel da sua substância» (Heb
1,3), que brilha com maior perfeição o rosto do «Pai das misericórdias e o
Deus de toda a consolação» (2 Cor 1,3).
Cristo é
a misericórdia de Deus personificada; por isso, só olhando para Cristo,
introduzindo-se no seu mistério, se pode perceber a riqueza insondável do «Deus
rico em misericórdia» (Ef 2,4).
«Jesus Cristo é o rosto da misericórdia do
Pai. O mistério da fé cristã parece encontrar nestas palavras a sua síntese.
Tal misericórdia tornou-se viva, visível e atingiu o seu clímax em Jesus de
Nazaré. O Pai, «rico em misericórdia» (Ef 2, 4), depois de ter revelado
o seu nome a Moisés como «Deus misericordioso e clemente, vagaroso na ira,
cheio de bondade e de fidelidade» (Ex 34,6), não cessou de dar a conhecer,
de vários modos e em muitos momentos da história, a sua natureza divina.
Na «plenitude
do tempo» (Gl 4,4), quando tudo estava pronto segundo o seu plano de salvação,
mandou o seu Filho, nascido da Virgem Maria, para nos revelar, de modo
definitivo, o seu amor. Quem O vê, vê o Pai (ver Jo 14,9). Com a sua palavra, os seus gestos e toda a sua pessoa, Jesus de
Nazaré revela a misericórdia de Deus» (Bula Misericordiae Vultus, 1).
I.
- JESUS REVELA A MISERICÓRDIA DE DEUS NA
SUA VIDA
1. A Encarnação
É a
expressão mais visível e mais densa da misericórdia. Ao “homogeneizar-se” com o
ser humano em Cristo (Fl 2,7), Deus “adquire” uma nova capacidade de
“ser misericordioso” em favor dos seus irmãos (Heb 2,17).
A misericórdia divina reveste em Cristo a
modalidade da mais profunda solidariedade, pois «não temos um Sumo-Sacerdote
que não possa compadecer-se das nossas fraquezas, pois Ele foi provado em tudo
como nós, exceto no pecado. Aproximemo-nos, então, com grande confiança, a fim
de alcançar misericórdia» (Heb 4,14-16).
A encarnação é a manifestação mais plena e
exaustiva da filantropia divina (Tt 3,4), e o ponto de partida da nova passagem
benfazeja de Deus pela humanidade (ver At 10,38).
Jesus não foi nada espiritualista. Nele tudo é
“encarnação”, e a encarnação define todo o seu projeto. A sua vida decorreu
pelas rotas mais próximas do realismo, desde o nascimento até à morte, «provado
em tudo como nós, exceto no pecado» (Heb 4,15).
Assumiu e desceu às zonas mais escuras do ser
humano – o pecado –, pois «Aquele que não havia conhecido o pecado, Deus o
fez pecado por nós» (2 Cor 5,21). E, se é certo que o pecado não entrou
nele, Ele sim entrou no pecado, desativando o seu poder de morte e libertando a
vida das suas sequelas destrutoras e desumanizadoras, pois «o aguilhão da
morte é o pecado… Mas sejam dadas graças a Deus que nos dá a vitória por meio
de Nosso Senhor Jesus Cristo» (1 Cor 15,56-57).
Jesus é encarnação em duas dimensões: Deus
encarnou no ser humano e o ser humano, em Deus. Deus encarnou na nossa vida e
nós encarnámos na vida de Deus.
A encarnação não é só uma verdade teológica,
mas real, histórica, personalizada em Jesus de Nazaré. Falando humanamente, porque
a nossa ciência é imperfeita (1 Cor 13,9), bem como a nossa
linguagem, pode dizer-se que a “encarnação” dotou Deus de novas possibilidades,
permitindo-lhe viver não só “divinamente”, mas também “humanamente”.
Em Jesus, Deus experimentou a vida do homem
por dentro: amou com amor humano, sofreu com dor humana, desfrutou com alegria
humana, chorou com lágrimas de homem… viu a vida com olhos de homem.
Até então, Deus tinha olhado o ser humano a
partir de “fora” e de “cima”; em Jesus olha-o de “baixo” e a partir de
“dentro”. A encarnação permitiu a Deus assumir um novo estilo de vida e mesmo
um novo ponto de vista.
E o ser humano também saiu enriquecido;
porque, a partir do homem Jesus, nós já não vemos a Deus a partir de “fora”,
mas de “dentro”; já não somos chamados a viver apenas “humanamente”, mas também
“divinamente”. A encarnação de Deus enriqueceu-nos a todos.
A encarnação é a grande opção e manifestação
da misericórdia de Deus. A misericórdia é a forma mais audaz, criativa e esperançosa
do amor. E assim nos ama Deus, em Cristo: audazmente – fazendo-se um dos
nossos; criativamente – recriando-nos como novas criaturas; e esperançosamente
– porque «a misericórdia não teme o julgamento» (Tg 2,13).
2. O projeto histórico de Jesus
A vida pública de Jesus esbordou em amor e
misericórdia. Embora seja difícil respigar num campo tão vasto, pode servir de
referência orientadora a leitura programática do texto isaiano na sinagoga de
Nazaré:
«O Espírito do Senhor está sobre mim,
porque Ele me ungiu
para anunciar a Boa-Nova aos pobres;
enviou-me
a proclamar a libertação dos cativos
e, aos cegos, a recuperação da vista;
a mandar em liberdade os oprimidos,
a proclamar um favorável da parte do Senhor» (Lc 4,16-21)
Perante o ser humano na sua concretização
histórica, Jesus não passou ao largo como os personagens da parábola do
samaritano (Lc 10,30ss), mas deteve-se diante de qualquer necessidade,
fazendo o bem a todos os que saíam ao seu encontro (At 10, 38), sem
recusar “as más companhias” nem “os grupos de risco”, não permitindo que se
perdesse qualquer grito de dor ou de esperança (Mc 10,46-52).
A sua vocação impedia-o de viver em ambientes
fechados. Viveu sem quaisquer cinturões protetores de segurança ou moralidade,
pois Ele irradiava as duas coisas a partir de dentro, sem temer contágios reais
ou rituais.
Não recusou “as más companhias”, porque veio
buscar a companhia do ser humano necessitado de redenção. E essas “companhias”
seguiram-no até à morte, porque Jesus não se preocupou tanto com “ter” boas
companhias, mas em “ser” um bom companheiro. Veio para recuperar da margem
certas existências, reintroduzindo-as no lar quente do Pai misericordioso, em
nome do Qual, abusivamente, haviam sido excluídas. E veio convidar-nos para nos
alegrarmos com esse agir de Deus (Lc 15,31-32).
Neste sentido, os pobres, os doentes e os “pecadores” são os
protagonistas da ação misericordiosa de Jesus, especialmente no Evangelho de
Lucas. Um aspeto que o Papa Francisco destaca nos números 9 e 16 da Bula do
Jubileu. Aconselho a lê-los, agora.
3. O
mistério pascal
A morte de Cristo «por nós» (Rm 5,8) é
a suprema expressão da misericórdia divina: «Deu, que é rico em misericórdia,
pelo amor imenso com que nos amou, precisamente a nós que estávamos mortos
pelas nossas faltas, deu-nos a vida com Cristo – é pela graça que vós estais
salvos – com Ele nos ressuscitou e nos sentou no alto dos céus, em Cristo. Pela
bondade que tem para connosco, em Cristo Jesus, quis assim mostrar, nos tempos
futuros, a extraordinária riqueza da sua graça» (Ef 2,4-7).
Significa o culminar da encarnação, da kénosis
do Filho de Deus, (Fl 2,8), o qual, «com orações e súplicas, … com
grande clamor e lágrimas» (Heb 5,7), realizou o supremo ministério sacerdotal
da misericórdia. Mas não o concluiu aí; continua a exercê-lo no santuário
celeste (Heb 4,14; 6,25; 8-9), onde está sentado à direita do Pai como «Sumo-Sacerdote
fiel» e misericordioso (Heb 2,17), a quem podemos dirigir-nos «com
grande confiança … a fim de alcançar misericórdia e encontrar graça para uma
ajuda oportuna» (Heb 4,16).
II. JESUS
REVELA A MISERICÓRDIA DE DEUS
COM AS
SUAS PALAVRAS E AS SUAS OBRAS
Missionário do Pai, Jesus veio anunciar e
inaugurar um Jubileu – «um ano favorável da parte do Senhor» (Lc 4,19)
–, mostrando-nos um Deus com rosto humano (antes era invisível), com nome
humano (antes era inefável) e com coração humano: um «Pai misericordioso» (Lc
6,36), que manifesta particularmente a sua alegria e felicidade na recuperação
do que estava perdido (Lc 15).
Um Deus que esquece a sua própria causa ou a
identifica com a do ser humano pobre (Mt 25,31-46); um Deus a quem o
culto não agrada tanto como a justiça (Mt 15,3-9), que não quer que,
para chegar ao Templo, se ignore a pessoa necessitada (Lc 10,25-37), que
prefere a recuperação de una adúltera à aplicação do castigo pelo adultério (Jo
8,1-11). Uma atitude, esta última, que merece uma reflexão especial, pois
revela o caráter singular da misericórdia. Também por isso, o Papa concede aos
sacerdotes, durante o Jubileu, absolver quem cometeu aborto.
Jesus não recrimina aquela mulher, nem a
envergonha com perguntas. Não silencia o seu pecado, mas tão-pouco o
absolutiza. Prefere encorajar, a reprender. E a mulher sentiu-se acolhida. Não
foi julgada nem pré-julgada. Jesus projeta aquela vida para a frente, para o
caminho novo que ela há de empreender, deixando para trás o caminho
irreversível, porque já andado: «Não voltes a pecar.» «Não te condeno»,
porque Deus, na sua misericórdia, te ama na tua debilidade.
Na sua pregação e na sua prática, Jesus
apresentou com nitidez e convicção o evangelho da misericórdia. Nisto se
destaca, uma vez mais, o evangelho de Lucas. As parábolas da ovelha perdida, da
dracma perdida e do filho pródigo (Lc 15, 4-31) são exemplos
paradigmáticos da vontade salvadora de Deus. Sem esquecer a do bom samaritano (Lc
10,29-37), a do rico e o pobre Lázaro (Lc 16,19-30), a do servo sem
compaixão (Mt 18,23-35), a do juízo final (Mt 25, 31-46).
Também em não poucas disputas com diversos
representantes do judaísmo ortodoxo, Jesus proclamou a singular audácia da
misericórdia de Deus (Lc 7,36-50; Mc 2, 15-17), convidando-os a
tirar as autênticas consequências do dito profético de Oseias 6,6: «Ide aprender
o que significa: Prefiro a misericórdia ao sacrifício» (Mt 9,13; 12,7).»
Retirado do Site dos Franciscanos
Capuchinhos: http://www.capuchinhos.org em 24-04-2016
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