«Como são belos sobre os montes os pés do
mensageiro que anuncia boas novas a Sião» (Isaías 52,7) «A voz do meu amado:
ei-lo que vem correndo sobre os montes» (Cânticos dos Cânticos 2,8) O Amor
verdadeiro está lá sempre primeiro
1.Vejo a Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, do Papa Francisco, a
primeira e programática do seu pontificado (n.º25), como uma torrente de «óleo
de alegria» (Isaías 61,3) a inundar, lubrificar e tonificar todos os recantos
de uma Igreja que se quer em «vestido de festa» (ainda Isaías 61,3),
jubilosamente saindo de si mesma, das amarras do medo, do comodismo, da
indiferença, do quietismo, de toda a rigidez autodefensiva, do telónio da administração
seja do que for. É verdade, necessário e urgente passar da «simples
administração» para um «estado permanente de missão» (n.º25). Requer-se,
portanto uma nova cultura e postura de evangelização, que vá muito para além de
uma simples pastoral de manutenção. Deve notar-se que, nas comunidades cristãs
primitivas, o termo «Evangelho» é o nome de acção e não de estado. Significa
«anunciar a notícia feliz da Ressurreição de Jesus», pelo que não pode ser
confundido com um livro colocado na estante que gera vidas colocadas na
estante. «Evangelho» significa então «evangelização», e evangelização implica
movimento e comunicação, e requer tempo, dedicação, formação, inteligência,
entranhas, mãos e coração.
2.Da paleta
de tintas do Papa Francisco sai uma Igreja pobre, leve e bela, com uma «tarefa
diária: é cada um levar o Evangelho às pessoas com quem se encontra» (n.º 127).
A esta Igreja bela não serve o hábito velho daquilo a que ele chama o
«deveriaqueísmo», que somos nós cómoda e vaidosamente sentados e entretidos
a discutir «o que se deveria fazer» (n.º 96). É o «excesso de diagnóstico» (n.º
50) ou o «excesso de meios, míngua de fins» (Edmund Pellegrino). Sim, este não
é o tempo do «deveriaqueísmo», mas o tempo do «saiamos, saiamos» (n.º 49), o
tempo de a Igreja inteira sair de si mesma, do seu estatismo autorreferencial.
Este é o tempo da leveza e da agilidade do Evangelho, de a Igreja «primeirear»
(n.º 24), levando a todos, sobretudo aos pobres, o anúncio do Evangelho,
que é «a primeira caridade» (n.º 199; Novo
Millennio Ineunte, n.º 50) e « o
primeiro serviço que a Igreja pode prestar ao homem e à humanidade inteira» (Redemptoris Missio, n.º 2). O ícone
feliz desta maneira de viver bem pode ser «Nossa Senhora da prontidão, que sai “
à pressa ” (Lucas 1,39) da sua povoação para ir ajudar os outros» (n.º 288).
3. Se não
sair ao encontro dos outros, sobretudo dos pobres, se não se lembrar dos
pobres, se não os tiver sempre presentes e não nutrir por eles um carinho
particular, a Igreja perde credibilidade e o seu critério-chave de autenticidade (n.º
195) e a autoridade. A autoridade na
Igreja é sempre por transparência. Transparência de Cristo, deixar passar Cristo,
« é Cristo que vive em mim» (Gálatas 2,20). «Nós só nos devíamos lembrar dos
pobres», aí está a condição que rege a missão do Apóstolo Paulo (Gálatas 2,10), «o maior
missionário de todos os tempos» (Bento XVI, Mensagem
para 45.º Dia Mundial de Oração pelas Vocações, 2008) e «modelo de cada evangelizador»
(Evangelii Nuntiandi, n.º 79). É bom
que a Igreja viva em permanentemente sintonia com as frequências do Sermão da
Montanha, em que os primeiros destinatários da felicidade são os «pobres de
espírito» (Mateus 5,3), que são os que não têm espaço político, económico,
social, educacional, cultural, humano: aqueles que não têm espaço vital, que
não têm espaço nenhum, com quem ninguém conta, nem contam para ninguém. Para
levar a todos e a todos envolver nesta onda de felicidade, é preciso uma Igreja
feliz, liberta de todas as amarras, do formalismo e do calculismo da
administração, da frieza da indiferença, do medo que tolhe os movimentos e leva
ao pecado da estagnação e da auto-preservação, poço de águas inquinadas.
4. Porque o
Papa apela ao uso de imagens para fazer passar a mensagem do Evangelho (n.º
157), enxerto aqui a bela interpretação que os targûmîm (paráfrases aramaicas) fizeram da passagem do Livro dos
Números 21,16-18:«Foi então que Israel cantou este poema de louvor, no momento
em que voltou o poço que lhes tinha sido dado por mérito de Miriam, depois de
ter estado escondido: “Sobe, poço! Sobe poço!”, assim cantavam. E ele subia. O
poço que tinham escavado os patriarcas, Abraão, Isaac e Jacob, os príncipes de
outrora, os chefes do povo, Moisés e Aarão, perfuraram-no os dirigentes de
Israel, mediram-no com as suas varas. E, depois do deserto, deu-se a eles como um dom. E
depois de se dar a eles como um dom, pôs-se a subir com eles pelas altas
montanhas, a descer com eles pelos vales. Passando por todo território de Israel, dava-lhes de beber a todos e a cada
um à entrada da sua tenda». Um poço que acompanha o povo por todo lado, por
montes e vales, e que dá de beber ao povo, imagem próxima das pessoas-cântaro
de que fala o Papa Francisco (n.º 86). Bela metáfora que traduz bem Jesus e que
pode e deve traduzir também a Igreja na sua acção de ir ao encontro das pessoas
para saciar a sua sede mais profunda.
5. A Igreja
de Cristo é formada por «discípulos
missionários», e não por «discípulos
e missionários» (n.º120), como se «missionário» pudesse ser apenas um
ornamento ou um acessório a apor ao «discípulo» (n.º 273). Não é um acessório
mais ou menos facultativo, que se pode ter ou não ter, usar ou não usar. É por
natureza que a Igreja é missionária (Ad
Gentes, n.º 2), e «evangelizar constitui, de facto, a graça e a vocação da
própria Igreja, a sua identidade mais profunda» (Evangelii Nuntiandi, n.º 14). Neste sentido, escreve bem o Papa
Francisco, «eu sou uma missão nesta terra» (n.º 273). Eu sou, tu és, nós somos.
Sim, este é o tempo de tudo o que é Igreja a transbordar de beleza (n.º 142), e
fecundar e contagiar de alegria a inteira paisagem humana e da criação em que por
graça estamos inseridos. Este é o tempo de sermos todos contemplativos de Deus
e contemplativos do rosto dorido e belo dos nossos irmãos (n.ºs 154.199.264).
Contemplativos e transparentes, habitados pelo mistério de Cristo e
dispensadores dos mistérios de Deus (1
Coríntios 4,1; Lumen Gentium, n.º21 ).
+ António Couto
“Artigo retirado da Revista “Eco das Missões”, edição n.º 740, de Janeiro 2014, pags. 14 e 15”
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