Homilia
do Papa Bento XVI na abertura do Ano Sacerdotal
"Queridos irmãos e irmãs:
Na antífona do Magnificat, dentro de pouco, cantaremos: “O
Senhor nos acolheu em seu coração”, “Suscepit nos Dominus in sinum et cor
suum“. No Antigo Testamento, fala-se 26 vezes do coração de Deus,
considerado como o órgão da sua vontade: em referência ao coração de Deus, o
homem é julgado. Por causa da dor que seu coração sente pelos pecados do homem,
Deus decide o dilúvio, mas depois se comove diante da fraqueza humana e perdoa.
Depois, há uma passagem do Antigo Testamento em que o tema do coração de
Deus se expressa de maneira totalmente clara: encontra-se no capítulo 11 do
livro do profeta Oseias, em que os primeiros versículos descrevem a
dimensão do amor com que o Senhor se dirige a Israel na aurora de sua
história: ”Quando Israel era menino, eu o amei e do Egito chamei meu
filho” (v. 1). Na realidade, à incansável predileção divina, Israel responde
com indiferença e inclusive com ingratidão. “Mas quanto mais os chamava, tanto
mais eles se afastavam de mim” (v. 2). No entanto, Ele não abandona Israel nas
mãos dos inimigos, pois “meu coração se contorce dentro de mim, minhas
entranhas comovem-se” (v. 8).
O coração de Deus se estremece de compaixão! Na solenidade do
Sagrado Coração de Jesus, a Igreja apresenta este mistério à nossa
contemplação, o mistério do coração de um Deus que se comove e oferece
todo o seu amor à humanidade. Um amor misterioso, que nos textos do Novo
Testamento nos é revelado como incomensurável paixão de Deus pelo homem. Não se
rende diante da ingratidão, nem sequer diante da rejeição do povo que Ele
escolheu; mais ainda, com infinita misericórdia, envia ao mundo seu Filho
unigênito para que carregue sobre si o destino do amor destruído; para que,
derrotando o poder do mal e da morte, possa restituir a dignidade de filhos aos
seres humanos escravizados pelo pecado. Tudo isso com um preço muito caro: o
Filho unigênito do Pai se imola na cruz: “Tendo amado os seus que estavam no
mundo, amou-os até o fim” (cf. João 13, 1). Símbolo deste amor
que vai muito além da morte é seu lado atravessado por uma lança.
Neste sentido, uma testemunha ocular – o apóstolo João – afirma: “Um dos
soldados traspassou-lhe o lado com uma lança e imediatamente saiu sangue e
água” (cf. João 19, 34).
Queridos irmãos e irmãs: obrigado, pois, respondendo ao meu convite,
viestes em grande número a esta celebração, pela qual entramos no Ano
Sacerdotal. Saúdo os senhores cardeais e os bispos, em particular o cardeal
prefeito e o secretário da Congregação para o Clero, junto a seus
colaboradores, e o bispo de Ars. Saúdo os sacerdotes e seminaristas dos
colégios de Roma; os religiosos e religiosas e a todos os fiéis. Dirijo uma
saudação especial a Sua Beatitude Ignace Youssef Younan, patriarca de
Antioquia dos Sírios, que veio a Roma para visitar-me e manifestar publicamente
a ecclesiastica communio (comunhão eclesial, N. da T.), que
lhe foi concedida.
Queridos irmãos e irmãs: detenhamo-nos para contemplar juntos o
Coração traspassado do Crucificado. Mais uma vez, acabamos de escutar, na breve
leitura tomada da carta de São Paulo aos Efésios, que “Deus, que é rico em
misericórdia, pelo grande amor com que nos amou, quando estávamos mortos em
nossos delitos, nos vivificou juntamente com Cristo – pela graça fostes salvos!
– e com ele nos ressuscitou e nos fez assentar nos céus, em Cristo
Jesus” (Efésios 2, 4-6). Estar em Cristo Jesus significa já sentar-se nos
céus. No Coração de Jesus se expressa o núcleo essencial do cristianismo;
em Cristo nos é revelada e entregue toda a novidade revolucionária do
Evangelho: o Amor que nos salva e nos faz viver já na eternidade de
Deus. O evangelista João escreve: “Deus amou tanto o mundo, que entregou o seu
Filho único, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna”
(3, 16). Seu Coração divino chama então nosso coração; convida-nos a sair de
nós mesmos e a abandonar nossas seguranças humanas para fiar-nos d’Ele e,
seguindo seu exemplo, a fazer de nós mesmos um dom de amor sem reservas.
Se é verdade que o convite de Jesus a “permanecer em seu amor” (cf. João
15, 9) se dirige a todo batizado, na festa do Sagrado Coração de Jesus, Dia de
Santificação Sacerdotal, este convite ressoa com maior força para nós, sacerdotes, em
particular nesta tarde, solene início do Ano Sacerdotal, que convoquei por
ocasião do 150º aniversário da morte do Santo Cura de Ars. Vem-me imediatamente
à mente uma bela e comovedora afirmação, referida no Catecismo da Igreja
Católica: “O sacerdócio é o amor do Coração de Jesus” (n. 1589). Como não
recordar com comoção que diretamente desse Coração manou o dom do nosso
ministério sacerdotal? Como esquecer que nós, presbíteros, fomos consagrados
para servir, humilde e autorizadamente, ao sacerdócio comum dos fiéis? Nossa
missão é indispensável para a Igreja e para o mundo, que exige fidelidade plena
a Cristo e uma incessante união com Ele; isto é, exige que busquemos
constantemente a santidade, como fez São João Maria Vianney. Na carta que vos dirigi por ocasião deste ano
jubilar especial, queridos sacerdotes, eu quis sublinhar alguns aspectos
que qualificam nosso ministério, fazendo referência ao exemplo e ao ensinamento
do Santo Cura de Ars, modelo e protetor de todos os sacerdotes, em particular
dos párocos. Espero que este meu texto vos sirva de ajuda e estímulo para fazer
deste ano uma ocasião propícia para crescer na intimidade com Jesus, que conta
conosco, seus ministros, para difundir e consolidar seu Reino, para
difundir seu amor, sua verdade. E, portanto, “a exemplo do Santo Cura de Ars,
deixai-vos conquistar por Ele e sereis, também vós, no mundo de hoje,
mensageiros de esperança, reconciliação e paz”.
Deixar-se conquistar totalmente por Cristo! Este foi o objetivo de
toda a vida de São Paulo, a quem dirigimos nossa atenção durante o Ano Paulino,
que já está terminando; esta foi a meta de todo o ministério do Santo Cura de
Ars, a quem invocaremos particularmente durante o Ano Sacerdotal; que este seja
também o principal objetivo de cada um de nós. Para ser ministros ao serviço do
Evangelho, é certamente útil e necessário o estudo com uma atenta e permanente
formação pastoral, mas é ainda mais necessária essa “ciência do amor”, que só
se aprende de “coração a coração” com Cristo. Ele nos chama a partir o pão do
seu amor, a perdoar os pecados e a guiar o rebanho em seu nome. Precisamente
por este motivo, não podemos nos afastar nunca do manancial do amor que é seu Coração
atravessado na cruz.
Somente assim seremos capazes de cooperar eficazmente com o misterioso
“desígnio do Pai”, que consiste em “fazer de Cristo o coração do mundo”,
desígnio que se realiza na história na medida em que Jesus se converte no
Coração dos corações humanos, começando por aqueles que estão chamados a estar
mais perto d’Ele, os sacerdotes. As “promessas sacerdotais” que
pronunciamos no dia da nossa ordenação e que renovamos cada ano, na
Quinta-Feira Santa, na Missa Crismal, voltam a nos recordar este constante
compromisso. Inclusive nossas carências, nossos limites e fraquezas devem
nos conduzir ao Coração de Jesus. Se é verdade que os pecadores, ao
contemplá-lo, devem aprender a necessária “dor dos pecados” que volta a
conduzi-los ao Pai, isso se aplica ainda mais aos ministros sagrados. “Como
esquecer que nada faz a Igreja, Corpo de Cristo, sofrer mais que os pecados dos
seus pastores, sobretudo daqueles que se convertem em “ladrões de ovelhas”
(João 10, 1ss), seja porque as desviam com suas doutrinas privadas, seja porque
as atam com os laços do pecado e da morte? Também para nós, queridos
sacerdotes, aplica-se o chamado à conversão e a recorrer à Misericórdia Divina,
e igualmente devemos dirigir com humildade incessante a súplica ao Coração de
Jesus para que nos preserve do terrível risco de causar dano àqueles
a quem devemos salvar.
Há pouco, pude venerar, na Capela do Coro, a relíquia do Santo Cura de Ars:
seu coração. Um coração inflamado de amor divino, que se comovia frente ao
pensamento da dignidade do sacerdote e falava aos fiéis com tons tocantes e
sublimes, afirmando que “depois de Deus, o sacerdote é tudo!… Ele
próprio não se entenderá bem a si mesmo, senão no céu” (cf. Carta para o Ano Sacerdotal). Cultivemos,
queridos irmãos, esta mesma comoção, seja para cumprir nosso ministério com
generosidade e dedicação, seja para custodiar na alma um verdadeiro “temor de
Deus”: temor de poder privar de tanto bem, por nossa negligência ou culpa, as
almas que nos foram confiadas, ou de poder causar-lhes dano. Que Deus não o
permita! A Igreja tem necessidade de sacerdotes santos, de ministros que
ajudem os fiéis a experimentar o amor misericordioso do Senhor e sejam suas testemunhas
convictas. Na adoração eucarística, após a celebração das Vésperas, pediremos
ao Senhor que inflame o coração de cada presbítero com essa caridade pastoral
capaz de fundir seu “eu” no de Jesus sacerdote, para assim poder imitá-lo na
mais completa entrega de si mesmo. Que nos obtenha esta graça a Virgem Mãe, de
quem amanhã contemplaremos com viva fé o Coração Imaculado. O Santo Cura de Ars
vivia uma filial devoção por ela, até o ponto de que, em 1836, antecipando-se à
proclamação do dogma da Imaculada Conceição, já havia consagrado sua
paróquia a Maria “concebida sem pecado”. E manteve o costume de
renovar frequentemente esta oferenda da paróquia à Santa Virgem, ensinando aos
fiéis que “basta dirigir-se a ela para ser escutados”, pela simples razão de
que ela “deseja sobretudo ver-nos felizes”. Que Nossa Senhora, nossa Mãe, nos
acompanhe no Ano Sacerdotal que iniciamos hoje, para que possamos ser guias
firmes e iluminados para os fiéis que o Senhor confia aos nossos cuidados
pastorais. Amém! "