«Parábola do Pai Misericordioso
Iniciamos
esta série de exclusivos de Lucas, com a parábola da misericórdia por
excelência. Vulgarmente é chamada "parábola do filho pródigo", mas
deve ser chamada parábola do pai misericordioso.
JESUS
CRISTO, O ROSTO MISERICORDIOSO DE DEUS-PAI
Entre
os humanos, misericórdia designa sentimento de compaixão ou de benevolência
suscitado pela miséria ou desgraça alheia. A Bíblia entende a misericórdia de
Deus, não tanto a partir dos sentimentos, mas a partir da sua fidelidade à
aliança.
A
força impulsionadora da misericórdia é o amor compassivo e afectuoso de Deus
conforme à aliança que Ele por bondade estabeleceu com o seu povo. Através de
Jesus, a aliança de Deus estendeu-se a toda a humanidade. A sua misericórdia
voltou-se para os humanos, radicalmente incapazes de se salvarem.
Assim,
«Cristo (...) revela Deus "rico em misericórdia". (...) Tornar
presente o Pai como amor e misericórdia constitui na consciência do próprio
Cristo ponto fundamental do exercício da sua missão messiânica. (...).
Baseando-se neste modo de manifestar a presença de Deus (...), Jesus faz da
misericórdia um dos principais temas da sua pregação.
Como
de costume, também neste ponto ensina antes de mais «em parábolas», porque elas
exprimem melhor a própria essência das coisas. Basta recordar a parábola do
filho pródigo. (...) Numerosas são ainda as passagens do ensinamento de Cristo
que manifestam o amor e a misericórdia sob um aspecto sempre novo. (...)
O
evangelista que trata de modo particular estes temas do ensino de Cristo é SÃO
LUCAS, cujo evangelho mereceu ser chamado o evangelho da misericórdia.» (JOÃO
PAULO II, Encíclica Dives in misericordia, 3. Daqui em diante, utilizamos a
sigla: DM).
A
PARÁBOLA DO PAI MISERICORDIOSO
Se
é especialmente com parábolas que Jesus revela e ilustra a misericórdia de
Deus, entre elas sobressai "a parábola da misericórdia" por
excelência, em Lc 15, 11-32. Costuma-se chamar "parábola do filho
pródigo"; na realidade, é a parábola do pai misericordioso para com os
dois filhos.
É
nela que a «essência da misericórdia divina aparece de modo particularmente
límpido. (...) A parábola do filho pródigo exprime de maneira simples mas
profunda (...) a mais concreta expressão da obra do amor e da presença da
misericórdia no mundo humano» (JOÃO PAULO II, DM, 5 e 6).
Por
isso, para fazer emergir Jesus como o rosto misericordioso de Deus Pai,
concentramos nela a nossa reflexão. Aprofundamos os seus níveis de sentido por
meio do método da lectio divina, seguindo os seus degraus clássicos. O percurso
da lectio divina faz com que, ao longo das várias etapas, a Palavra trabalhe o
coração do leitor, lhe dê sabedoria e vá melhorando pouco a pouco a sua vida.
PARÁBOLA
DO PAI MISERICORDIOSO (ou do filho pródigo)
(Lucas
15,1-3. 11-31)
1Aproximavam-se
dele todos os cobradores de impostos e pecadores para o ouvirem. Mas os
fariseus e os doutores da lei murmuravam entre si, dizendo: «Este acolhe os
pecadores e come com eles." Jesus propôs-lhes, então, esta parábola: [...]
11«Um
homem tinha dois filhos. 12 O mais novo disse ao pai: 'Pai, dá-me a parte dos
bens que me corresponde.' E o pai repartiu os bens entre os dois.
13Poucos
dias depois, o filho mais novo, juntando tudo, partiu para uma terra longínqua
e por lá esbanjou tudo quanto possuía, numa vida desregrada. 14Depois de gastar
tudo, houve grande fome nesse país e ele começou a passar privações. 15Então,
foi colocar-se ao serviço de um dos habitantes daquela terra, o qual o mandou
para os seus campos guardar porcos. 16 Bem desejava ele encher o estômago com
as alfarrobas que os porcos comiam, mas ninguém lhas dava. 17E, caindo em si,
disse: 'Quantos jornaleiros de meu pai têm pão em abundância, e eu aqui a
morrer de fome! 18 Levantar-me-ei, irei ter com meu pai e vou dizer-lhe: Pai,
pequei contra o Céu e contra ti; 19 já não sou digno de ser chamado teu filho;
trata-me como um dos teus jornaleiros.' 20 E, levantando-se, foi ter com o pai.
Quando
ainda estava longe, o pai viu-o e, enchendo-se de compaixão, correu a
lançar-se-lhe ao pescoço e cobriu-o de beijos.
21
O filho disse-lhe: 'Pai, pequei contra o Céu e contra ti; já não mereço ser
chamado teu filho.'
22
Mas o pai disse aos seus servos: 'Trazei depressa a melhor túnica e vesti-lha;
dai-lhe um anel para o dedo e sandálias para os pés.
23
Trazei o vitelo gordo e matai-o; vamos fazer um banquete e alegrar-nos, 24 porque
este meu filho estava morto e reviveu, estava perdido e foi encontrado.' E a
festa principiou.
25
Ora, o filho mais velho estava no campo. Quando regressou, ao aproximar-se de
casa ouviu a música e as danças. 26 Chamou um dos servos e perguntou-lhe o que
era aquilo. 27 Disse-lhe ele: 'O teu irmão voltou e o teu pai matou o vitelo
gordo, porque chegou são e salvo.' 28 Encolerizado, não queria entrar; mas o
seu pai, saindo, suplicava-lhe que entrasse. 29 Respondendo ao pai, disse-lhe:
'Há já tantos anos que te sirvo sem nunca transgredir uma ordem tua, e nunca me
deste um cabrito para fazer uma festa com os meus amigos; 30 e agora, ao chegar
esse teu filho, que gastou os teus bens com meretrizes, mataste-lhe o vitelo
gordo.'
31
O pai respondeu-lhe: 'Filho, tu estás sempre comigo, e tudo o que é meu é teu.
32 Mas tínhamos de fazer uma festa e alegrar-nos, porque este teu irmão estava
morto e reviveu; estava perdido e foi encontrado.'» (Lc 15,1-3.11-31)
"LECTIO
DIVINA" DA PARÁBOLA DO PAI MISERICORDIOSO
A
leitura divina é um exercício de leitura orante e meditação contemplativa duma
passagem da Sagrada Escritura, acolhida na fé como Palavra de Deus, sob a acção
do seu Espírito. Esta forma de leitura da Bíblia faz subir o leitor crente
pelos sucessivos degraus do sentido desse texto: do texto para Deus e de Deus
para a vida:
●
o leitor começa pela lectio propriamente dita ou leitura;
●
esta leva-o espontaneamente para a meditatio (meditação),
●
que progride para a oratio (oração)
●
ou se expande no patamar da contemplatio (contemplação);
●
tudo isto tende a transformar-se em vida, na actio (acção) quotidiana.
OS
DEGRAUS DA "LECTIO DIVINA"
Geralmente,
costumam "subir-se" estes cinco degraus, como fazemos aqui:
1.
a leitura procura o sentido do texto no seu contexto original, literário e
religioso;
2.
a meditação encontra o sentido para a minha vida, hoje;
3.
a contemplação saboreia o atributo de Deus proposto pela passagem bíblica;
4.
a acção traduz em actos a vontade de Deus "assim na terra como no
céu";
5.
a oração responde à Palavra de Deus e pede força para viver a sua mensagem.
Para
uma apresentação mais completa deste método de leitura da Bíblia, ver A. dos S.
VAZ, A arte de ler a Bíblia: em louvor da lectio divina (Fundação 'Ajuda à
Igreja que sofre' - Edições Carmelo; Lisboa - Paço de Arcos 2002). Neste artigo
só deixamos o indispensável para a lectio divina de Lucas 15,11-32.
1.
Leitura compreendida (Lectio)
O
primeiro degrau da lectio divina intenta perceber a mensagem que o texto queria
comunicar aos leitores daquele tempo. Para isso, convém tomar consciência do
género de texto usado para a comunicar.
As
características literárias desta narrativa apontam para uma parábola. Por estar
em forma de história e recorrer a imagens e figuras concretas, o relato em
forma de parábola causa impacte na imaginação e nos sentimentos do ouvinte. A
sua significação deve ser buscada para lá do que ela conta literalmente. Num
jogo de sobreposições, uma história significante vai fazendo emergir outra
história significada: por exemplo, na parábola do semeador as diversas
produções da semente sugerem os efeitos da Palavra de Deus (ver Mt
13,3-9.18-23).
Típico
da parábola narrativa é surpreender o leitor com uma situação fora do comum: um
patrão que paga o mesmo salário por uma e por doze horas de trabalho (Mt
20,1-16), um proprietário que elogia a astúcia desonesta do seu administrador
(Lc 16,1-8), um pai que acolhe em festa o filho esbanjador e debochado... E
geralmente é provocante, envolvendo o ouvinte nas redes da trama narrativa
(veja 2 Sm 12,1-14).
Ao
transportar o ouvinte para outro mundo, a alteridade divina vem ao seu encontro
de modo surpreendente. Sugere superar a forma demasiado humana de ver Deus,
baseada no mérito e demérito relativamente ao cumprimento da Lei. Insinua que a
justiça de Deus não assenta em leis de equidade distributiva, comutativa ou
reivindicativa e só tem um nome: amor e misericórdia. É isso o que revela de
Deus a parábola do pai misericordioso.
À
procura da sua mensagem, impõe-se perguntar desde logo: porquê a narrativa põe
em cena dois filhos e não um ou três? E porquê um mais novo e outro mais velho?
Um primeiro nível de resposta parece simples. São dois, porque Lucas diz na introdução
à parábola (vv.1-3) que «os cobradores de impostos e os pecadores se
aproximavam de Jesus», enquanto «os fariseus e os escribas murmuravam» dele.
Cada um dos dois filhos quer, pois, ilustrar o comportamento destes dois grupos
de pessoas na sua relação mútua e com Jesus/Deus:
::
O filho mais novo representa «os cobradores de impostos e os pecadores»
(vv.1-2). Ou seja: a outra parte do mundo da qual os judeus observantes de
então se distinguiam, eles que dividiam o mundo em dois grandes blocos: nós, os
eleitos, e os outros, os pecadores. Estes são representados pelo filho mais
novo, porque, tal como ele, tinham entrado mais tarde na lógica das promessas
divinas e da aliança de Deus com o seu povo.
::
O filho mais velho representa «os fariseus e os escribas», que se julgavam
justos, porque cumpridores da Lei de Moisés e herdeiros das promessas divinas
desde Abraão; por isso, consideravam que a salvação lhes era devida. Para estes
doutores da Lei (pelo menos enquanto audiência) ia inteirinha a parábola, como
resposta imediata à sua murmuração contra Jesus; ao mesmo tempo, acenava com a
misericórdia de Deus aos pecadores, para que se arrependessem.
::
A mensagem da parábola vai continuar a emergir, à medida que formos subindo
para sucessivos degraus desta lectio divina.
2.
Meditação
(Meditatio)
Neste
patamar, interrogo-me: Que quer dizer a parábola para mim? Meditando-a, sou
induzido a pensar que ela me diz respeito, como um pedaço da minha vida real. É
um pouco da história da minha vida. E torna-se eficaz quando me deixo
interpretar por ela, quando me identifico com as atitudes das personagens ou de
uma delas, que podem ter muito em comum com as minhas.
::
Às vezes na vida pareço-me ao filho mais novo, embora sem o corte radical que a
parábola descreve. Ele fez uma aposta errada na roleta da vida e perdeu tudo.
Chegado a um beco sem saída, só tinha uma alternativa ao desespero: fazer o
caminho de retorno. Tomou a decisão correcta, "dando a volta" à sua
situação miserável e voltando ao seio do pai. Foram a meditação e a oração que
o repuseram no caminho direito: «Caindo em si, disse: "Irei ter com meu
pai e dir-lhe-ei: pai, pequei contra o céu e contra ti".»
A
atitude lúcida de pôr-se a caminho da casa do pai corresponde à essência da
boa-nova de Jesus: «Arrependei-vos e acreditai no evangelho» (Mc 1,15; Mt 3,2).
Esta metanoia ou conversão é um deixar de olhar para o passado e um voltar-se
para o futuro, iniciando uma vida nova. A autêntica declaração feita diante do
pai é uma das mais sentidas formulações bíblicas da confissão dos pecados.
Mas note-se o que o salvou o filho não foi a confissão;
foi o amor entranhado do pai, expresso no seu abraço, nos beijos efusivos e no
acolhimento afectuoso, ainda antes da confissão do filho.
O
filho mais novo é o tipo de pessoa que goza a vida e gosta de a sorver às mãos
cheias, querendo desfrutar dela depressa, mesmo que para se satisfazer tenha de
servir-se de tudo e de todos. É protótipo dos marginais, dos incrédulos, dos
proscritos da sociedade, daqueles que não se permitem o luxo de amar... mas
que, quando se emendam, têm grande capacidade de fazer festa, conscientes de
que todos os prazeres juntos não têm sentido em comparação com a alegria que
sentem na casa do pai. Este filho, não sendo imitável na dilapidação dos dons
paternos, é de seguir na «determinada determinação» de não ficar encarcerado na
miséria e de se acolher à misericórdia do pai.
::
Outras vezes na minha vida pareço-me ao filho mais velho, descrito como fiel
cumpridor das ordens do pai. O seu problema era pensar a relação com ele
segundo a lógica do contrato, em vez da lógica do amor. Calculista, era incapaz
de amar gratuitamente, dando importância a coisas materiais: «nunca me deste um
cabrito...» Nessa concepção mesquinha da vida, quando as coisas não correm
perfeitas, não se pode ser senão ressentido. E enquanto houver ressentimento
não se pode ser feliz. Ele estava bloqueado pelos seus mecanismos de defesa,
especialmente pelo cumprimento meticuloso dos deveres, que lhe dava orgulho e
sentido de perfeição própria. Esse rigor esterilizou nele a capacidade para
compreender o amor. O encerramento dentro de si próprio cegava-o para a ternura
do pai e dava lugar ao rancor. Não percebia que 'amor só com amor se paga' (e
que isso não é propriamente uma paga); nem que a sua maior recompensa era estar
permanentemente na casa do pai e em comunhão com ele.
E
eu? Dou porque me é dado e para que me seja dado, ou dou como exteriorização de
um amor interior? A figura do filho mais velho ilustra este drama de cada pessoa
nas suas multiformes relações.
::
O essencial da parábola é o festival da misericórdia, promovido pelo pai,
pródigo de amor. De facto, a história de cada filho termina de forma idêntica,
com um apelo efusivo do pai à necessidade de fazer festa, como forma subtil de
perdoar sem fazer alarde de tão generoso acto.
Em
relação ao filho pródigo, a misericórdia do pai não humilha. Ele nem sequer
menciona a absolvição: acolhe sem condições e sem censurar o desatino do filho.
A decisão de fazer festa brota de sentimentos interiores: comoveu-se nas suas
entranhas – «entranhadamente comovido», diz o texto. Vê-lo ao longe, correr ao
seu encontro, lançar-se-lhe ao pescoço e cobri-lo de beijos é como introduzi-lo
outra vez nas próprias entranhas e gerar de novo esse filho desfeito. O pai é
como que tocado no seio maternal, que gera a vida; o seu amor é total e implica
todas as dimensões: amor paterno, materno e de amigo. Enquanto tal, é criativo
e regenerador: por isso, poderá dar de novo a vida ao filho que «estava morto».
Essa
regeneração acontece através da misericórdia. Perdoando, cancela objectivamente
a ofensa e dá uma oportunidade completamente nova. O perdão e a alegria do pai
anulam o pecador e fazem renascer o filho. Olha para o filho, não para o seu
pecado. A sua atitude de amor extremo e extremoso deixa entender que é na
misericórdia acolhedora que está o limite para a violência.
::
À luz disto, a minha postura será deixar-me ser filho perante um pai tão
generoso.
3.
Contemplação (Contemplatio)
Nesta
etapa, subimos do texto até Deus. E a nossa atenção dirige-se para o seguinte:
Qual a relação desta narrativa com Deus? Já vimos que se trata de uma parábola;
ora, este género literário não deixa soar o nome de Deus uma única vez. Mas Ele
pode ser contemplado por trás de cada uma das palavras e das atitudes do pai
desta história, pois revela-se nelas. O comportamento do pai traduz o plano de
reconciliação de Deus enquanto Pai misericordioso, realizado pelo Filho. A
parábola encerra a essência do Evangelho de Jesus e do cristianismo, pois vela
e desvela a imagem do verdadeiro Deus.
Antes
de Jesus, os profetas e os sábios tinham anunciado um Deus bondoso, criador,
libertador, fiel, suma Verdade, fonte de Vida. Mas o grande feito da história
da salvação é outro: «Há mais alegria no Céu por um só pecador que se converte,
do que por noventa e nove justos que não necessitam de arrependimento» (v. 7).
Esta é a suprema revelação de Jesus: que Deus é Amor apaixonado, mesmo por quem
não o merece; é Misericórdia.
A
MISERICÓRDIA DE DEUS-PAI
O
traço distintivo da revelação de Jesus foi o inconcebível: a possibilidade de
acesso à salvação por parte de toda a espécie de malfeitores, desde que O amem.
A misericórdia de Deus em Jesus Cristo revelou ao mundo uma nova forma de se
relacionar com Deus: já não precisa de contar com os próprios méritos,
bastando-lhe confiar na bondade gratuita de Deus.
Como
a parábola também é uma crítica às autoridades religiosas judaicas do tempo,
representadas no filho mais velho, a mensagem comunicada também soa assim: Deus
alegra-se quando aquele que "estava perdido foi recuperado";
garantidamente, vai à procura e ao encontro dos perdidos. E a simples
possibilidade de o seu perdão ser acolhido é motivo de festa.
O
modo de ser do Deus de Jesus fica ulteriormente ilustrado pelas posturas dos
filhos. O mais novo estava disposto a renunciar ao nome de "filho" e
a aceitar a condição de "assalariado" bem pago («trata-me como um dos
teus jornaleiros»: v.19), imaginando que o pai poderia comportar-se como um
patrão. O mais velho fala do pai como de um patrão a cujo serviço trabalha como
escravo: «Há já tantos anos que te sirvo [douléuô = como escravo]...».
Realmente, a ideia que no tempo de Jesus todos os fiéis observantes das leis
judaicas tinham de Deus era a de um patrão que paga equitativamente o merecido,
não a de um pai misericordioso que dá por magnanimidade.
::
Com a parábola do pai misericordioso encontramo-nos perante um novo ponto de
partida nas relações de Deus com o homem.
4. Em
vista da acção (Actio)
Como
acabamos de ver, a leitura divina faz o leitor subir do texto até Deus, mas
também o faz descer até à vida concreta.
Por
força da insistência na justiça e nos direitos das pessoas, impera hoje uma
mentalidade que induz os que falam de misericórdia a sentirem-se quase
envergonhados. Perante isto, os cristãos não podem deixar esvaziar de conteúdo
a misericórdia, que é a fina-flor das relações sociais e o meio mais eficaz da
transformação do ser humano e da sociedade. O pedido e a oferta de perdão não
são sintoma de fraqueza, mas de grandeza de alma, e incarnação de uma atitude
divina na sociedade humana: só o perdão é capaz de libertar do ódio e da
violência, tornando a pessoa livre. Às vezes só a misericórdia consegue romper
a espiral de inimizades, agressões e conflitos interpessoais, em círculo
estreito ou em larga escala.
Nessa
linha de acção, o direito, a justiça e a misericórdia não são contraditórios
mas complementares: A misericórdia autêntica é, por assim dizer, a fonte mais
profunda da justiça. Em certo sentido, também é a mais perfeita incarnação da
"igualdade" entre os homens e, por conseguinte, a incarnação mais
perfeita da justiça. O mundo dos homens só se tornará mais humano se
introduzirmos no quadro multiforme das relações interpessoais e sociais,
juntamente com a justiça, o "amor misericordioso" que constitui a mensagem
messiânica do Evangelho,
É
evidente que exigência tão generosa em perdoar não anula as exigências
objectivas da justiça. A justiça bem entendida constitui, por assim dizer, a
finalidade do perdão. O perdão manifesta que, além do processo de
"compensação" e de "trégua", que é a característica da
justiça, é necessário o amor para que o homem se afirme como homem. Ao
analisarmos a parábola do filho pródigo, dirigíamos a atenção para o facto de
que aquele que perdoa e o que é perdoado se encontram num ponto essencial, que
é a dignidade, o valor essencial do homem, e cuja afirmação ou reencontro é
origem da maior alegria (JOÃO PAULO II, DM 14).
O
verdadeiro significado da misericórdia não consiste apenas no olhar... com que
se encara o mal moral, físico ou material. A misericórdia manifesta-se com a
sua fisionomia característica quando reavalia, promove e sabe tirar o bem de
todas as formas de mal existentes no mundo e no homem (Idem, 6).
A
misericórdia de Deus, experimentada com anterioridade, deveria ter como
consequência a misericórdia dos humanos entre si, como resposta agradecida:
«não deverias tu também ter tido misericórdia do teu companheiro como eu tive
misericórdia de ti?» – diz-se noutra parábola, a do servo sem misericórdia (Mt
18,23-35).
::
A eficácia do amor misericordioso de Deus no ser humano redimido demonstra-se
para o exterior no espírito do amor fraterno
MAIS
UM DEGRAU, QUANDO DE FAZ EM GRUPO
Colação
(Collatio)
Se
a leitura orante se faz em grupo, a meditação transforma-se em partilha de
ideias e de sentimentos suscitados pelo texto. E temos mais este degrau...
Aqui
ficam algumas provocações para reagir em grupo.
A
parábola incide na postura final de cada filho face ao pai, tendo em conta que
as situações de ambos se viram durante a narração: o filho mais novo parte como
depravado, mas arrepende-se; o filho mais velho parte como cumpridor da vontade
do pai, mas endurece o coração em relação a ele e ao irmão.
::
Por qual dos irmãos tem mais simpatia?
::
E com qual deles se identifica mais?
::
Uma vez lançado ladeira abaixo, como o filho pródigo, haverá forças e
oportunidade para travar a tempo de evitar o precipício
5. Oração (Oratio)
Uma
boa forma de terminar uma sessão de leitura orante da Bíblia em grupo é com a
oração, que responde ao Deus que se revela no texto. Esta que propomos,
invoca-o como Pai misericordioso:
Pai,
"rico em misericórdia", (Ef 2,4)
permite
que a escuta assídua da tua Palavra
me
oriente para ti
e
me dê o sentido de abertura à tua graça.
"Pela
tua grande misericórdia,
gera-me
de novo para uma esperança viva". (1 Pe 1,3)
Que
"a lei do Espírito que dá vida em Cristo Jesus", (Rm 8,2)
me
faça perceber as surpresas do teu amor misericordioso,
para
eu ver que a verdadeira liberdade
só
existe em comunhão com a tua vontade. (...)»
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