sábado, 24 de março de 2018
O Vídeo do Papa: Formação para o discernimento espiritual
"Para que toda a Igreja reconheça a urgência da formação para o discernimento espiritual, a nível pessoal e comunitário."
Intenção de oração do Papa Francisco para o mês de março 2018: A Igreja hoje precisa crescer na capacidade de discernimento espiritual. Há muitas maneiras de dedicar bem a vida, colocando-a a serviço dos ideais humanos e cristãos. Fomos criados por Deus por amor e para amar. Precisamos "ler a partir de dentro" o que o Senhor nos pede, para viver no amor e ser continuadores desta sua missão de amor. O tempo em que vivemos exige de nós desenvolver uma profunda capacidade de discernimento... Discernir, entre todas as vozes, qual é a voz do Senhor, qual é a voz d'Ele, que nos conduz à Ressurreição, à Vida, e a voz que nos livra de cair na "cultura da morte".
"Retirado do site dos Missionários Combonianos - https://www.combonianos.pt em 24.03.2018"
quinta-feira, 8 de março de 2018
terça-feira, 6 de março de 2018
Olhos fixos em Jesus
“Sumário
Olhos fixos em Jesus
1 Ser crente hoje (Juan Martín Velasco)
2 Paisagens para a fé (Dolores Aleixandre Parra
3 Com os olhos fixos em Jesus (José Antonio Pagola)
Apresentação
Oh, cristalina fonte,
se nesses teus semblantes prateados
formasses de repente
os olhos desejados
que tenho nas entranhas desenhados!
São João da Cruz.
Cântico espiritual
A geografia do corpo humano, relacionada com a fé, mostra-se
rica em lugares. Pés que andam ou desandam veredas, mãos que agarram ou soltam,
ouvidos que escutam ou estão fechados... Mas, provavelmente, não haja outro
lugar que tenha um papel tão peculiar como os olhos. Antes do contato físico –
e contando também que possam existir olhos cegos –, eles são vigias
encarregados de vislumbrar, quando ainda estão longe, tanto as presenças
desejadas como as indesejáveis. Por isso os olhos podem certamente ser
considerados como uma autêntica porta da fé, como acontece com o discípulo
amado quando descobre a presença do Senhor ressuscitado à margem do Lago da
Galileia (Jo 21).
Porta fidei, a “porta da fé”, é precisamente o título que
Bento XVI deu ao motu proprio com o qual ele convocava este “Ano da Fé”. Um ano
que vai de 11 de outubro de 2012 a 24 de novembro de 2013. A data de início não
é casual, pois nela se celebra o cinquentenário da abertura do Concílio
Vaticano II, e os vinte anos da publicação do Catecismo da Igreja Católica.
Para a comemoração destas efemérides, três dos mais
importantes e significativos autores no campo do pensamento religioso e
teológico espanhol – os três, em grande parte, filhos desse Concílio cuja
lembrança celebramos – brindam-nos com suas reflexões a propósito da fé. Com os
olhos fixos em Jesus, cada qual com seu estilo e seu gênio particular, vai
extraindo aqueles aspectos relativos à fé cristã que podem ajudar os leitores a
personalizá-la e fazê-la cada vez mais própria. Porque é disso que se trata. As
diferentes pistas para a reflexão pessoal ou em grupo que acompanham os textos
oferecem também diferentes modos de leitura do livro e a possibilidade de poder
trabalhar com ele.
Os olhos permitem o jogo dos olhares. Um jogo no qual convém
ter sempre presente o dito do poeta: “O olho que vês não é olho porque tu o
vês, é olho porque te vê” (Antonio Machado). Oxalá este livro sirva para que
aqueles que o leiam – seja qual for sua situação pessoal ou eclesial – se
sintam benevolamente contemplados pelo Senhor e possam chegar a pronunciar com
verdade aquelas palavras de São Paulo: “Sei em quem pus minha fé” (2Tm 1,12).
PPC
1 Ser crente hoje (Juan Martín Velasco)
(…)
1.1 A situação religiosa e nossa própria situação como crentes
Crise religiosa e crise
de Deus
(…)
Este risco já está se tornando realidade porque a crise
religiosa converteu-se em crise de Deus e da fé. Indícios dela são a extensão
da descrença por todos os setores da sociedade e a radicalização de suas
manifestações que desembocou numa indiferença generalizada, e no fato de que
“da fé em Deus já não partem estímulos que determinem a vida e a história” (W.
Kasper). O último avatar desta crise de Deus é sua extensão a muitos crentes, e
sua presença no interior da Igreja.
O próprio Bento XVI referiu-se a ela ao denunciar a anemia da
fé dos crentes como o aspeto mais grave da atual crise religiosa da Europa, e
advertir que um agnóstico em busca pode estar mais próximo de Deus do que um
cristão rotineiro, e que é cristão meramente por tradição ou por herança.
(…)
Estamos de fato
afetados pela crise de Deus?
(…) Pode até parecer uma ofensa atribuir uma possível crise
da fé em Deus a pessoas que se consideram e se confessam crentes; que cumprem
bem ou mal com suas obrigações de cristãos e que até consagraram sua vida ao
serviço da Igreja. Mas a verdade é que a falta de irradiação da fé que se
mostra nas comunidades cristãs, sua incapacidade de comunicar e transmitir a fé
às gerações jovens e a tibieza da vida cristã de tantas comunidades, e daqueles
que as presidem, faz temer que alguns ou muitos dos que crêem e se chamam
crentes sofram, em maior ou menor grau, essa crise e que possam continuar a
chamar-se crentes só a partir de uma maneira distorcida de entender a fé que
está bem longe de refletir a forma de crer proposta pelo Evangelho.
(…)É possível que, depois da renovação da teologia da fé
posterior ao Vaticano II, tenhamos ouvido e aprendido que a fé é encontro
pessoal, confiança incondicional em Deus e o creiamos, mas sem ter dado passos
para realizar o que estas fórmulas significam. Nossa situação poderia ser
semelhante à de Moisés que vê ao longe a terra prometida, mas que alguma coisa
– que no nosso caso não procede precisamente de Deus – o impede de entrar nela.
O Livro dos Atos dos Apóstolos se refere aos primeiros cristãos como “os
crentes” (At 2,44; 5,14; 1Ts 1,7). Será que nós cristãos, os católicos de hoje,
podemos identificar-nos com esse belo nome?
(…)Sem dar-nos conta de que entre este saber sobre Deus e
sobre o Cristo, e crer nele há a mesma distância que entre saber sobre o amor
porque se leu livros que o explicam e conhecê-lo porque se teve a sorte de amar
e ser amado.
(…)É provável que existam grupos cristãos que não se
identifiquem com essa situação porque não faltam no catolicismo atual grupos
confessantes, com práticas exigentes, com gestos de manifestação pública de sua
condição de católicos, com atividades destinadas a atrair outros à Igreja, mas
com atitudes que poderiam levar a vê-los refletidos na figura do fariseu que
orava no templo, satisfeito consigo mesmo e dando graças a Deus por não ser
como os demais, mas que não saiu do templo justificado.
(…)
1.2 O caminho para a fé “O que devemos fazer, irmãos?” (At 2,37)
(…)
Condições para que a
palavra “Deus” recupere todo o seu esplendor
O que deve acontecer numa pessoa para que a palavra “Deus”
recupere essa densidade de significado, essa qualidade única que ela tem nos
lábios dos verdadeiros crentes, dos convertidos, e que faz com que a realidade
à qual se refere transtorne a vida de quem a diz com toda verdade e não, como
tantas vezes acontece, “tomando-a em vão”? O que primeiro deve acontecer é que
essa realidade se faça presente à pessoa das mil formas em que se pode dar sua
presença invisível, mas inconfundível: a partir do interior da consciência, num
acontecimento de sua vida, no rosto do outro, na Escritura, em Jesus Cristo
reconhecido como “Deus connosco”. Em segundo lugar, que o sujeito tenha sua
consciência desperta, aberto e disposto seu coração. E, finalmente, que
reconheça essa presença única em sua inteira originalidade, a acolha como a
origem da qual está procedendo sua vida; como a realidade à qual apontam suas
perguntas radicais, pela qual suspira o anseio que embarga sua vida; como a
meta à qual se dirige a flecha em permanente voo de sua inquietude. Para que
isto ocorra é preciso que o sujeito chegue ao fundo de si mesmo, ao manancial
do qual brota o arroio de sua vida, ao coração, sede de suas decisões e desejos
e descubra, reconheça, “realize”: “todas as minhas fontes estão em ti”; “em ti
estão as fontes da vida”; “tua luz nos faz ver a luz!”
Condições prévias e
preâmbulos existenciais para iniciar o caminho da fé
Para que esse milagre aconteça muitas condições são exigidas.
Em primeiro lugar, requer-se que o sujeito seja sujeito como não o é em nenhuma
outra circunstância, em nenhuma outra decisão, em nenhuma outra relação das
muitas que pode entabular em sua vida. Porque quando a consciência se abre à
presença do Mistério com a qual está agraciado e lhe abre a porta da liberdade
à sua vida, esta sofre uma comoção que sacode os fundamentos da falsa segurança
em que estava instalado, dilata o horizonte limitado em que se encontrava
encerrado, “empurra-o para regiões do espírito onde é impossível confundir o
verdadeiro com o desejado com o que todos creem” (K. Rahner) e com o que ele
mesmo até esse momento acreditava crer. Porque na decisão crente, o sujeito
aposta tudo, põe tudo em jogo: Il va de tout, dizia Pascal; res tua agitur,
“trata-se de ti mesmo”, diziam os antigos; de ver-se “incondicionalmente
concernido” (P. Tillich). São João da Cruz expressou essa implicação total do
sujeito na atitude teologal, com especial vigor, quando põe nos lábios da alma
à espera do Deus com quem quer entrar na relação da fé viva: “Dando-te todo a
toda minha alma, para que ela te possua todo”[10].
Para que o sujeito chegue a este grau de realização de si
mesmo precisa em primeiro lugar superar formas inautênticas de vida, aquelas
“formas de vida desperdiçada” (S. Kierkegaard) que o impedem ser ele mesmo.
A primeira consiste em superar a má tendência do ser humano
ao “divertimento”, à diversão como forma de vida que conduz ao esquecimento de
si mesmo. Esta passagem tem sido assinalada por todas as tradições espirituais:
o caminho para a identificação com Brahman, o Absoluto no hunduísmo, começa
pela superação da situação de maya, de ilusão, na qual o homem mundano vive
estabelecido. Para poder viver espiritualmente, os estoicos recomendavam:
oblivionem fugite, “fugi do esquecimento”. Pascal descreveu com todo detalhe a
aloucada busca do “divertimento” e seus perigos[11]. Kierkegaard referiu-se a
ela como a forma por excelência de vida desperdiçada: “A do homem que nunca se
decidiu com uma decisão eterna a ser consciente enquanto espírito, enquanto eu;
ou, o que dá no mesmo, que nunca se deu conta nem sentiu profundamente a
impressão do fato da excelência de Deus e de que ‘ele’, ele mesmo, seu próprio
eu, existia diante de Deus”[12].
A escuta do chamamento da Presença requer passar da
superficialidade da vida à recuperação do centro da pessoa; da dispersão à
unificação interior em torno do verdadeiro centro; da dissipação de si mesmo
num ativismo desmedido à simplificação da vida em torno do único necessário.
A segunda disposição que torna impossível a atenção à
Presença é a adoção de uma atitude possessiva. De novo as espiritualidades e
sabedorias da história coincidem em denunciar este perigo mortal para a
constituição de um sujeito verdadeiramente humano. A atitude possessiva reduz o
ser humano a sujeito de posses e acaba fazendo-o escravo delas; converte o ser
humano em “consumidor”. “Toda posse é contra a esperança”, escreve São João da
Cruz. Não podemos esquecer as invetivas de Jesus sobre o perigo das riquezas;
que a primeira bem-aventurança evangélica é “bem-aventurados os pobres”, e que
ser pobre é condição para pertencer ao Reino dos Céus.
Para poder ser destinatário efetivo do chamado de Deus, capaz
de escutá-lo, é ainda indispensável ser um sujeito livre; ter superado as
incontáveis ataduras externas e internas, as múltiplas dependências de coisas,
pessoas, ideologias, modas. As múltiplas “adições” às quais somos tão
propensos e que tornam impossível dispor de si para poder entregar-se ao Outro
que se apresenta a nós reclamando o mais puro exercício de nossa liberdade. E
lembremos, também, que pouco importa que o pássaro esteja preso por um fio ou
por uma corda grossa. Em ambos os casos, adverte São João da Cruz, ele está
impossibilitado de voar.
Dito em termos positivos, ser crente requer como passo
prévio, como “preâmbulo existencial”, uma forma de vida que ponha o sujeito em
disposição de dizer com toda verdade: “Eis-me aqui”, à Presença que o chama.
Não se trata, pois, de esforços que se fazem para conseguir apropriar-se ou
dominar algo que o próprio sujeito tenha feito objeto de sua busca. “Ao homem –
advertia Simone Weil – está vedado caminhar verticalmente”[13]. Trata-se muito
mais de tornar-se disponível, de fazer lugar, de afundar no “vazio de infinito”
que Deus pôs em seu interior, e colocar-se à altura da Realidade pela qual o
ser humano é buscado[14].
Chegar ao próprio centro é condição indispensável para ser
crente, mas não é suficiente. Chegado à “sala imensa” da memória humana, de sua
consciência, incapaz de abarcar a si mesma, Santo Agostinho sente a necessidade
de transcendê-la: “Transcenderei, pois, esta força que existe em mim [...].
Sim, vou transcendê-la para poder chegar a ti”[15]. “Suba – diz Ricardo de São
Vítor – através de si mesmo, para além de si mesmo”. Chegados ao fundo de nós
mesmos ou, usando outra imagem, ao “cume de nossa mente”, suspeitamos o mais
além de nós mesmos que sustenta a inconsistência de nossa existência;
descobrimo-nos incapazes de explicar nossa vida e convertidos num enigma para
nós mesmos para o qual não temos resposta[16]; vislumbramos que o curso de
nossa vida procede de um manancial que a alimenta[17]. Mas justamente aí se
abre para nós a possibilidade de ser crentes ou de recusar sê-lo. Qual é o
passo decisivo que nos converte em crentes?
(…)
1.3 Para uma fenomenologia da atitude crente
Temos repetido com insistência que o sujeito humano deve
reconhecer e aceitar a presença originante da qual ele procede e que com seu
oferecimento suscita sua existência pessoal. Mas, o que significa esse
“reconhecer”, aceitar ou acolher a Presença que constitui o essencial da
atitude teologal?
Colocar em Deus o
centro de nossa vida numa atitude de confiança incondicional
A radical originalidade da Presença com a qual o ser humano é
agraciado impõe uma originalidade igualmente radical à atitude pela qual a
reconhece, identificada por nós cristãos como “atitude teologal”. O próprio
termo “reconhecer” indica que se trata de outra forma de relação diferente
daquela que expressamos com termos como “saber” ou “conhecer”, como formas de
relação baseadas no contato com a realidade através dos sentidos, ou na
formação de uma noção ou uma ideia da realidade conhecida. (..)
(…) Por isso se pôde dizer com razão que crer é uma
“expropriação de si mesmo” (H.U. von Balthasar). É a desinstalação do ser
humano de sua condição de sujeito e centro da realidade, como condição para que
se realize o encontro com o Mistério (…)
(…)A Escritura se refere expressamente a este traço não
eliminável da atitude crente em termos quase idênticos: “Segundo a conceção
bíblica, a Palavra de Deus se apropria do homem inteiro e coloca seu centro de
gravidade fora dele”[20]. “A fé – como também foi dito – é um ato de obediência
por meio do qual o ser humano se confia total e livremente a Deus”. H. Bremond,
grande conhecedor da literatura mística, escreve: “Na primeira conversão não se
muda de dono; o sujeito continua sendo o “capitão de sua própria alma [...]”.
Aqui, ao contrário, na segunda, ele vai entregar todo seu ser, o mais profundo.
Na primeira, ele cede só o usufruto; na segunda, cede a propriedade da alma;
numa, só se cedem as flores e os frutos, na outra, a árvore inteira”[21]. O Evangelho
já o havia dito antes: “Quem quiser salvar sua vida, a perderá; quem consentir
em perder sua vida por mim, a salvará” (Mc 8,35). (…)
1.4 Crer cristãmente
Jesus Cristo, iniciador
e consumador de nossa fé
Deus está presente em todos os seres humanos e está
permanentemente com eles. Sem sua presença não poderiam existir: “Se retiras o
teu alento, eles perecem e voltam a seu pó” (Sl 104,29). “Deus [...] não está
longe de cada um de nós, pois nele vivemos, nos movemos e existimos” (At
17,27-28). O Vaticano II no-lo recorda: “Deus dá a todos os homens um
testemunho duradouro de si mesmo nas coisas criadas” (Dei Verbum 3), e no
interior deles mesmos. A história religiosa da humanidade é o testemunho da
“busca às apalpadelas” que essa presença suscitou em todos os seres humanos,
das respostas que estes lhe têm dado, das representações de Deus a que têm
chegado e dos nomes com os quais o têm invocado.
Nós cristãos, como todos os humanos, ouvintes da Palavra,
agraciados como todos eles pela presença criadora de Deus, vivemos essa
condição inscritos numa tradição religiosa, nascida no seio do judaísmo, que
reconhece em Jesus o rosto de Deus, a imagem pessoal do Deus invisível: “A
Deus, ninguém jamais o viu; o Filho Unigênito, que está no seio do Pai, foi
quem no-lo deu a conhecer” (Jo 1,18). Ainda que Jesus se inscreva na tradição
dos profetas, Ele não é só um profeta. Não só fala de Deus, é a Palavra de Deus
que se fez homem; revela a Deus pessoalmente. É a parábola viva de Deus.
Através de sua vida e seus ensinamentos Ele nos revela Deus, não desvelando o
Mistério que é Deus, mas revelando-o como Mistério.
Para assegurar e discernir a retidão de nossas representações
de Deus, nós cristãos dispomos de um critério seguro: olhar para Jesus “imagem
do Deus invisível”, em quem reside a plenitude da divindade.(…)
Em perfeita coerência com sua vida, seus ensinamentos em
forma de parábolas, e suas obras, sinais do reino, revelam Deus como um Pai
misericordioso, sempre disposto ao Perdão, que se alegra com o retorno do pecador
e o celebra com alegria.
1.5 O exercício de ser crente
A fé tem vocação de
experiência
(…)
Deixamos aqui de lado a experiência da fé no sentido objetivo
do genitivo, isto é, a experiência que tem a fé por objeto 48], para
referir-nos exclusivamente à experiência que é a fé, entendida como atitude
fundamental pela qual o sujeito, convocado, interpelado pela presença de Deus
que se revela a ele, a acolhe num ato de transcendimento de si mesmo e de
confiança incondicional, na qual “se confia” a ela. Colocar em prática esta
atitude fundamental, o ato de crer, não é um ato particular, categorial – se
cabe falar assim – que se acrescenta ao resto dos atos da vida da pessoa. É uma
opção fundamental que afeta o conjunto da pessoa, é “um ato do ser humano
todo”; um ato de obediência por meio do qual “ele se confia total e livremente
a Deus” (DV 5). Um ato, dirá Kierkegaard, pelo qual “ao querer ser si mesmo, o
eu se apoia de uma maneira lúcida no Poder que o criou”, “no Poder que o
fundamenta”[49]. Por isso não é exagero dizer que ser crente comporta, por
parte do ser humano, uma forma nova de exercício da existência, que passa de
existir a partir de si mesmo como origem e fundamento da própria vida, a
existir a partir de Deus, aceito como raiz, origem e meta de seu ser. Por isso
o cristianismo se refere ao crer como “um novo nascimento” (Jo 3,3-8). E afirma
que a fé gera um “homem novo” (Ef 2,15; 4,24); que o crente começou a ser em
Cristo “uma nova criatura” (2Cor 5,17).
Esta nova forma de existência permite caminhar “numa vida
nova” (Rm 5,4) que comporta “a conversão do olhar”, que purifica a pupila da
alma, “o que há de mais divino no ser humano” e a “ conversão do coração”, uma
expressão com a qual São Bernardo define a fé, que expressa a cura da vontade e
do desejo liberados para sua orientação ao sumo Bem, e a cura da liberdade que
se eleva do livre-arbítrio, da capacidade de escolher e da autodeterminação e
do domínio de si mesmo à “aspiração à graça”, “na qual consiste a verdadeira
liberdade”[50].(…)
1.6 As três dimensões
da atitude teologal
(…)
1.7 São Paulo, modelo
de crente
(…)
A segunda Carta a Timóteo (2Tm 1,12) coloca nos lábios de
Paulo, depois de aludir a seus sofrimentos : “Não me envergonho, porque sei em
quem confiei”. Paulo está bem consciente de que “o eminente conhecimento de
Cristo” , fruto de sua fé, não esgota as riquezas da glória, da sabedoria e da
graça do Deus revelado em Jesus Cristo ( Rm 11,33; Ef 1,7; Cl 1,27). Por isso
ele sabe muito bem que está longe de ter alcançado a meta do caminho que
iniciou com a sua adesão e a razão da sua segurança. Esta segurança não é fruto
da firmeza de sua decisão, do afinco com que se propôs confiar em Deus com todas as forças a seu
alcance. A segurança lhe vem da pessoa na qual confiou; de sua condição de realidade
firme diante da inconsistência da sua própria; de sua condição de fiel a todo o
custo. Por isso é o exercício de seu confiar-se a Ele, que lhe presta a
convicção cada vez mais firme de que o
Deus revelado em Jesus Cristo merece
toda a confiança. E a razão da firmeza da confiança de Paulo é a “força do
Evangelho de Jesus Cristo que destruiu a morte”, e a experiência vivida nos
momentos de fraqueza de que “basta-te a minha graça” (2Cor 12,9). (…)
2 Paisagens para a fé (Dolores Aleixandre Parra)
“Jesus passou novamente para
a outra margem do Jordão, onde João tinha começado a batizar […]. E ali
muitos creram nele” (jo 10,41-42)
Ali, precisamente naquele lugar concreto, do outro lado do
Jordão. Talvez alguns, com o passar do tempo, voltariam a passar por aquele
lugar, e sentiriam a mesma emoção daqueles dois discípulos que seguiram a Jesus
e se lembravam de que foi exatamente “ às quatro horas da tarde”. Eles
reconheciam o lugar : “ Foi aqui que comecei a crer em Jesus”. E percorriam com
seu olhar cada detalhe da paisagem: o rio, as árvores, as pedras, os arbustos
com as colinas da Judeia ao longe. E é que esses lugares, nos quais alguns
cruzaram com Jesus antes de nós, continuam a estar ali: os montes, os caminhos,
o deserto, os poços ou o lago não sabem de tempo, nem de idades, nem de
mudanças.
As casas não são mais as mesmas, mas sim o solo em que foram
levantadas e também os nomes de lugares que continuam gravados em nossa
memória: Mambré, Belém, Nazaré, Cafarnaum, Jericó, Caná e ou outros mais. As árvores de então também não estão mais
lá, mas outras oliveiras continuam sua tarefa e as figueiras continuam brotando quando se aproxima o
verão. Talvez já não exista mais aquela árvore sob a qual se sentou Natanael ou
aquela em que Zaqueu subiu, mas outras
ocuparam o seu lugar e à sua sombra vêm sentar-se caminhantes fatigados. Na
primavera, as flores inundam as ladeiras das colinas da Galileia e continuam
sussurrando a quem as escute que nem Salomão em todo seu esplendor se vestiu
como elas. O Poço de Siquém e as fontes de Siloé e de Nazaré continuam manando,
e às vezes o céu se torna avermelhado ao entardecer anunciando a chuva.
Vamos aproximar-nos dessas paisagens com respeito, como os
peregrinos que visitam os “lugares santos”. Neles, homens e mulheres que nos
precederam no caminho da fé viveram uma experiência de encontro com o Senhor. A
história de sua fé continua sendo nossa. (…)
3 Com os olhos fixos em Jesus (José Antonio Pagola)
Por volta do ano 80, começa a circular por algumas
comunidades cristãs um escrito conhecido hoje como Carta aos Hebreus. Seu
autor, bom conhecedor da religião judaica, vai destacando a importância única e
irrepetível de Jesus, muito superior aos veneráveis personagens da tradição
bíblica. No final de sua obra, deixa claro que os cristãos podem contar com uma
“grande nuvem de testemunhas” da fé na história de Israel, mas que agora nos é
proposto viver “com os olhos fixos em Jesus, autor e consumador da fé” (Hb
12,2).
O objetivo desta reflexão é recuperar Jesus, o Cristo, como
“autor da fé”, o único que pode regenerar nossa pequena fé, fraca e vacilante,
para fazer-nos renascer para a verdadeira identidade de discípulos e seguidores
de Jesus.
3.1 Voltar a Jesus
Cristo
(…) Precisamos voltar
para o que é a fonte e a origem da Igreja: só isso justifica sua presença no
mundo. Arraigar nossa fé em Jesus Cristo como única verdade da qual nos é
permitido viver e caminhar de maneira criativa para o futuro. Recuperar o
essencial do Evangelho, renascer juntos do Espírito de Jesus.
Entrar pelo caminho aberto por Jesus
(…)Os cristãos das
primeiras comunidades se sentiam seguidores de Jesus, mais do que membros de
uma nova religião. Segundo Lucas, as comunidades eram formadas por pessoas que
conheceram o “Caminho do Senhor” (At 18,25) e,
atraídas por Jesus, entraram por ele. Sentem-se “seguidoras do Caminho”
(At 9,2)(…)
(…) Infelizmente, tal como é vivida hoje por muitos, a fé
cristã não suscita “seguidores” de Jesus, mas só adeptos de uma religião. Não
gera “discípulos” que, identificados com o seu projeto, entregam-se
para abrir caminhos ao Reino de Deus, mas membros duma instituição que
cumprem melhor ou pior suas obrigações
religiosas. (…)
(…) A renovação da fé está pedindo hoje que se passe de
comunidades formadas maioritariamente de “adeptos” a comunidades de
“discípulos” e “seguidores” de Jesus, o Cristo. Como entrar por esse caminho
aberto por Jesus?
Voltar à Galileia
Os relatos evangélicos foram
compostos para oferecer-nos a possibilidade de conhecer esse caminho
aberto por Jesus. É o que sugere a mensagem que as mulheres receberam junto ao
sepulcro na manhã da Páscoa: “Buscais a Jesus de Nazaré que foi crucificado?
Ele ressuscitou, não está mais aqui”. Não devemos buscá-lo no mundo dos mortos.
Onde Ele pode ser encontrado por seus seguidores? É preciso voltar à Galileia:
“Ele irá à frente de vós. Lá o vereis”(MC 16,7). Temos que ir à Galileia,
voltar ao início. Fazer o percurso que os primeiros discípulos fizeram seguindo
o chamamento de Jesus : escutar de novo sua mensagem, aprender seu estilo de
vida a serviço do Reino de Deus, compartilhar seu destino de morte e ressurreição
[93]. (…)
O Evangelho como novo
começo
(…) Temos que entender e configurar a comunidade cristã como
lugar onde se acolhe o Evangelho de Jesus. Um lugar humilde e frágil nestes
momentos, mas um lugar onde se cuida, antes de tudo, do acolhimento do
Evangelho. Temos que instaurar tempos e espaços para percorrer juntos os
relatos evangélicos. Reunir os crentes, os menos crentes, os pouco crentes e
inclusive os não crentes em torno do Evangelho de Jesus. Dar ao Evangelho a
oportunidade de desenvolver sua frescura e sua força salvadora penetrando em
nossas vidas com seus problemas, crises, medos e esperanças.
Temos que entender bem que os evangelhos são relatos de
conversão. Eles não só narram o caminho aberto por Jesus, mas o fazem para
gerar fé em Jesus Cristo. São relatos que convidam a entrar num processo de
mudança, de mutação de identidade, de seguimento do Reino de Deus. Nessa
atitude de conversão é que vamos lê-los, meditá-los e compartilhá-los nas comunidades
cristãs.(…)
3.2 Crer na Boa Notícia
de Deus
(…)Será que não chegou a hora de promover no interior da
igreja a tarefa apaixonante de “apreender”, a partir de Jesus, como é Deus, como
nos sente e nos busca, e o que quer para seus filhos e filhas?
(…)A Boa Notícia de Deus, proclamada por Jesus, não traz nada
que possa impedir-nos de acolher Deus como graça, libertação, perdão, alegria e
força para crescermos como seres humanos.
Deus, amigo da vida
(…) Jesus vivencia Deus como o melhor amigo do ser humano: um
Deus “Amigo da vida”. Ele não oferece a seus discípulos uma informação
suplementar sobre Deus. O que transmite a todos é sua experiência de Deus como
um “mistério de bondade” que poderia libertar-nos de tantas ambiguidades com as
quais obscurecemos seu rosto santo.
(…)Segundo Jesus, para Deus o que está em primeiro lugar é a
vida das pessoas, não o culto; a cura dos e enfermos, não o sábado; a
reconciliação social, não as oferendas que cada um leva para o altar do Templo;
o acolhimento amistoso dos pecadores e o perdão curador de Deus, não os ritos
de expiação. Jesus pronunciou um dia estas palavras inesquecíveis: “ O sábado
foi instituído para o ser humano e não o
ser humano para o sábado” (Mc 2,27). O sistema religioso deve estar a serviço
das pessoas.
(…) Os camponeses da Galileia tiveram que captar bem depressa
a enorme diferença que havia entre João Baptista e Jesus. A preocupação suprema
de Baptista é o pecado. Toda a sua atuação gira em torno do pecado do povo:
denuncia os pecados, chama os pecadores para fazer penitência diante da
iminente chegada de um Deus juiz e oferece um batismo de conversão e perdão
aos que acorrem ao Jordão. Assim ele prepara Israel para encontrar-se com seu
Deus juiz. O Baptista não cura os enfermos, não toca na pele dos leprosos, não
abraça as crianças da rua, não se senta a comer com pecadores, prostitutas e
indesejáveis. Não faz gestos de bondade, não alivia o sofrimento, não se
entrega para fazer a vida mais humana. Não se desvia da sua missão estritamente
religiosa.
Ao contrário, o primeiro olhar de Jesus se dirige ao
sofrimento das pessoas mais enfermas e desnutridas da Galileia, não a seus pecados. Ele anuncia um Deus
salvador e amigo que realiza gestos de bondade. Sua vida gira em torno do
sofrimento: abençoa os enfermos, liberta os leprosos da marginalização, abraça
os pequeninos e frágeis, liberta os possuídos por espíritos malignos, acolhe os
pecadores desprezados por todos. Isto é novo. Jesus proclama Deus curando a
vida. Anuncia a salvação eterna curando a vida atual. Esta é a recordação que
Jesus deixou: “Ungido por Deus com o Espírito Santo e com poder, passou pela
vida fazendo o bem e curando todos os oprimidos pelo diabo, porque Deus estava
com Ele” (At 10,38). (…)
Deus, o Bom Pai de
todos
(…)Como dizia o grande teólogo Karl Rahner no final de sua
vida: “Por Jesus sabemos que Deus é bom e nos quer bem. Não precisamos de muito
mais”.
A esse bom Deus, Jesus o invoca sempre como Pai. Chama-O
Abbá, uma expressão que nos lares judeus era utilizada pelas crianças pequenas
ao falar com seu pai. Jesus vive Deus como alguém tão próximo, bom e
entranhável que, ao comunicar-se com Ele, lhe vem espontaneamente aos lábios
essa palavra carinhosa: Abbá, “Pai querido”. Não encontra expressão melhor.
Esse Bom Pai é um Deus próximo e acessível a todos. Qualquer
um pode comunicar-se com Ele do mais íntimo de seu coração. Ele fala a cada um
sem pronunciar palavras humanas. Ele atrai a todos para o que é bom e nos faz
bem. Os simples o conhecem melhor do que os entendidos. Para encontrar-se com
Ele não são necessárias liturgias complicadas como a do Templo. Basta
encerrar-se num aposento e dialogar com Ele no íntimo.
(…)Esse Pai bom e próximo é de todos. Busca seus filhos e
filhas onde estão, ainda que se encontrem perdidos, ainda que vivam de costas
para Ele. Ninguém é insignificante a seus olhos. A ninguém dá por perdido.
Ninguém está órfão, Ninguém caminha esquecido e só. Segundo Jesus, Deus “faz
nascer o sol sobre bons e maus; manda chuva sobre justos e injustos” (Mt 5,43).
O sol e a chuva são de todos. Deus os oferece como presente, rompendo nossa
tendência para descriminar aqueles que nos parecem indignos. Deus não é
propriedade dos bons.
(…) Deus não separa nem excomunga, Deus abraça e acolhe. É um
erro pretender construir a comunidade de Jesus excluindo aqueles que nos
parecem indignos. Isso não corresponde à Boa Notícia de Deus proclamada por
Jesus.
(…)Ninguém realizou nesta terra um sinal mais carregado de
esperança, mais gratuito e mais absoluto do perdão de Deus. Sua mensagem
continua ressoando ainda hoje para quem a escute em seu coração: “ Quando vos
virdes rachados pela sociedade, sabei que Deus vos acolhe e defende. Quando vos
sentirdes julgados pela religião, senti-vos compreendidos por Deus. Quando
ninguém vos perdoar vossa indignidade, confiai em seu perdão inesgotável. Não o
mereceis, mas Deus é assim: amor e perdão.
Parábola para nossos
dias
Em nenhuma outra parábola Jesus conseguiu sugerir-nos com
tanta profundidade o mistério de Deus e o enigma da condição humana como na
chamada “Parábola do Bom Pai” ou do “Filho Pródigo”, narrada no Evangelho
de Lucas (Lc 15,11-32). Nenhuma é tão
atual para os nossos tempos.
O filho mais novo disse a seu pai: “Dá-me a parte da herança
que me cabe”. Ao reclamá-la está pedindo
de alguma maneira a morte de seu pai. O jovem quer ser livre. Não será
feliz enquanto seu pai não desaparecer de sua vida. O pai aceita sem dizer
nenhuma palavra: o filho poderá escolher livremente o seu caminho.
Não acontece hoje algo parecido entre nós? Não são poucos os
que querem ver-se livres de Deus, ser felizes sem a presença de um Pai eterno
em seu horizonte. Deus deve desaparecer da sociedade e das consciências. E,
assim como na parábola, o Pai guarda silêncio. Deus respeita o ser humano.
(…)O filho se instala prontamente numa “vida desordenada”. O
termo original não sugere só uma desordem moral, mas uma vida insana,
transtornada e caótica. Em pouco tempo, a sua aventura começa a converter-se em
drama. Sobrevém uma “fome terrível” e ele só sobrevive cuidando de porcos, como
escravo de um estranho. Suas palavras revelam tragédia: “aqui eu vou morrer de
fome”. O vazio interior e a fome de amor podem ser os primeiros sinais de nossa
distância de Deus. Não é fácil o caminho para a liberdade. O que nos falta? Em
que estamos nos equivocando? O que poderia satisfazer o nosso coração? Temos
quase tudo, por que sentimos fome?
(…) Quando o pai vê chegar seu filho faminto e humilhado, “
comove-se até às entranhas”, corre a seu encontro, abraça-o e o beija
efusivamente, como uma mãe. Interrompe a
confusão do filho para poupar-lhe mais humilhações. Não exige dele nenhum rito
de purificação, não lhe impõe nenhum castigo, nenhuma condição para acolhê-lo
de novo em sua casa. Dá-lhe a dignidade de filho: o anel de casa e a melhor
veste. Oferece ao povoado uma grande festa: banquete, música e baile. O filho
deve conhecer junto de seu pai a vida digna e feliz que não pôde desfrutar
longe dele. Este acolhimento nos sugere o amor de Deus melhor do que muitos
livros de teologia.
Quando Deus é percebido como poder absoluto que se impõe pela
força de sua lei, emerge uma religião regida pelo medo, pelo rigorismo, pelos
méritos e castigos. Este Deus é uma má noticia: muitos o abandonarão. Pelo
contrário, quando Deus é experimentado como bom, próximo, libertador e
perdoador, nasce uma religião animada pela confiança, pela alegria, pela
resposta agradecida e pela ação de graças. Este Deus é uma Boa Notícia: não
aterroriza por seu poder, atrai por sua bondade, seduz por sua força salvadora.
Na mensagem de Jesus está subjacente uma promessa: Deus é para os que têm
necessidade de que Ele exista e seja bom.(…)
3.3 Recuperar o Projeto
do Reino de Deus
Muitos cristãos vivem hoje sua fé sem conhecer o grande
projeto de Deus de ir mudando o mundo para tornar possível uma vida mais
humana. Alguns nem sequer ouviram falar desse projeto que Jesus chama “Reino
de Deus”. Não sabem que a paixão que animou sua vida, a razão de ser de toda a
sua atividade, o objetivo de todos os seus esforços foi anunciar e promover o
projeto humanizador do Pai, “buscar o Reino de Deus e a sua justiça”,
trabalhar para construir uma vida mais digna, mais justa e mais feliz para
todos. Esta é a tarefa que Jesus confiou a seus seguidores : “Anunciai o Reino
de Deus, abri caminhos à sua justiça, curai a vida”.
(…)Por isso devemos agradecer a Paulo VI e a João Paulo II
que, recolhendo o sentir do Concílio Vaticano II, tenham feito duas afirmações
básicas que não podemos esquecer nestes momentos. O primeiro reafirmando o
carácter primordial do Reino de
Deus, diz assim: “Somente o Reino é
absoluto, o resto é relativo”. O segundo, precisando a natureza da Igreja em relação com o Reino de
Deus, afirmava: “A Igreja não é em si mesma seu próprio fim, pois está
orientada para o Reino de Deus, do qual ela é germe, sinal e instrumento”[97].
O Projeto humanizador
de Deus
Com uma audácia desconhecida, Jesus surpreende a todos
anunciando algo que nenhum profeta de Israel se havia atrevido a declarar:
“Deus já está aqui, com sua força criadora de justiça, tratando de reinar entre
nós”. O Evangelista Marcos resume assim sua mensagem profética: “Completou-se o
tempo e o Reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede na Boa Notícia”(Mc
1,15). Começa um tempo novo. Deus não quer manter-se longe, deixando-nos sós
diante nossos conflitos, sofrimentos e desafios.(…)
(…) Temos que converter-nos a este Deus que está sempre
chegando à nossa vida: mudar de modo de pensar e agir. Entrar na lógica e na
dinâmica do Reino de Deus. O Pai não pode mudar o mundo, se nós não mudamos.
Sua vontade de fazer um mundo diferente vai se tornando realidade em nossa
resposta.
(…) Temos que tomar a
sério esta Boa Notícia de Deus. Crer no poder transformador do ser humano,
atraído por Deus para uma vida mais digna. Não estamos sós. Deus está
sustentado também hoje o clamor dos que sofrem e a indignação dos que trabalham
pela justiça.
(…) O que surpreende é que Jesus nunca explica propriamente o
que é o “Reino de Deus”.
(…) São estes os traços principais desse reino: uma vida de
irmãos animada pela compaixão que tem o Pai do céu para com todos; um mundo em
que se busca a justiça e a dignidade para todo ser humano, a começar pelos
últimos; onde todos são acolhidos, sem excluir ninguém da convivência e da
solidariedade; onde se cura a vida libertando as pessoas e a sociedade inteira
de toda escravidão desumanizadora; onde a religião está a serviço das pessoas,
sobretudo das mais desvalidas e esquecidas; onde se vive acolhendo o perdão de
Deus e dando graças a seu amor insondável de Pai.(…)
A compaixão como
princípio de ação
O que define esse Deus que quer reinar no mundo não é o
poder, mas a compaixão. Ele não vem para impor-se e dominar o ser humano.
Aproxima-se para tornar nossa vida mais digna e feliz. Esta é a experiência
comunicada por Jesus em suas parábolas mais comovedoras [99] e que inspira toda
a sua trajetória a serviço do Reino de Deus. Jesus não pode experimentar Deus
acima ou à margem do sofrimento humano. A compaixão é o modo de ser de Deus, a
sua maneira de olhar o mundo, o que o move a torna-lo mais humano e habitável.
(…) A partir de sua experiência radical da compaixão, Jesus
introduz na história um princípio decisivo de ação: “ Sede compassivos como
vosso Pai é compassivo” (Lc 6,36) [100]. A compaixão ativa e solidária é a
grande lei da dinâmica do reino.
(…) O primeiro passo é resgatar a compaixão de uma conceção
sentimental e moralizante. Não reduzi-la a assistência caritativa nem a obra de
misericórdia. Na mensagem e na atuação profética de Jesus subjaz um grito de
indignação absoluta: o sofrimento dos inocentes deve ser tomado a sério; não
pode ser aceite como algo normal, pois é inaceitável para Deus. O que Jesus
está reclamando ao pedir-nos que sejamos
compassivos como o Pai é uma maneira nova de relacionar-nos com o sofrimento
injusto que existe no mundo.
(…) A figura do samaritano, na parábola narrada por Jesus, é
o modelo de quem vive imitando a compaixão do céu. O Samaritano vê o ferido no
caminho, comove-se e se aproxima dele: enfaixa suas feridas, cura-as com azeite
e vinho, coloca-o montado em sua própria cavalgadura, leva-o a uma pousada,
cuida dele, compromete-se a assumir os gastos…(Lc 10,30-37). (…)
Os últimos hão de ser
os primeiros
Podemos dizer que a primazia dos últimos inspirou sempre a
atividade de Jesus a serviço do Reino de Deus. Para Ele, os últimos são os
primeiros. Ser compassivo como o Pai exige buscar a justiça de Deus a começar
pelos últimos.
(…) Segundo o relato de Lucas, o Espírito de Deus empurra
Jesus para os mais pobres. Na sinagoga de Nazaré apresenta-o aplicando a si
mesmo estas palavras do Livro de Isaías : “ O Espírito do Senhor está sobre
mim, porque me ungiu. Enviou-me para anunciar aos pobres a Boa Notícia, para
proclamar a libertação dos cativos e dar a vista aos cegos, para dar liberdade
aos oprimidos e proclamar um ano de graça do Senhor”(Lc 4,16-22). Fala-se aqui
de quatro grupos de pessoas: os “pobres”, os “encarcerados”, os “cegos” e os
“oprimidos”. Eles resumem e simbolizam a primeira preocupação de Jesus: os que
leva mais dentro do seu coração. Nós falamos de “democracia”, “direitos
humanos”, “progresso”, “Estado de bem-estar”…Jesus sugere começar por resgatar
a vida dos últimos, fazendo-a mais saudável, mais digna e mais humana. (…)
Recuperar o Pai-nosso
como oração do Reino
O Pai-nosso é a oração que Jesus deixou em herança aos seus.
É a única que lhes ensinou para alimentar a identidade dos seus seguidores e
colaboradores no projeto do Reino de Deus.
(…) O Pai-nosso nos revela, como nenhum outro texto
evangélico, os sentimentos que Jesus guardava em seu coração. É a melhor
síntese do Evangelho- brevioloquium
Evangelii-,a oração que melhor identifica Jesus. (…)
3.4 Seguir Jesus, o
Cristo
Jesus iniciou um
movimento profético de seguidores e seguidoras aos quais confiou a tarefa de
anunciar e promover o projeto do Reino de Deus. (…)
(…) o critério primordial e a chave decisiva para entender e
viver a fé cristã é seguir Jesus Cristo. Quem o segue vai descobrindo o
mistério que encerra nele, coloca-se na perspetiva correta para entender sua
mensagem e vai aprendendo a trabalhar hoje a partir de sua Igreja a serviço do
Reino de Deus. Seguir a Jesus Cristo constitui o núcleo, o eixo e a força que
permite a uma comunidade cristã desenvolver sua fé em Jesus Cristo.
Por isso, seguir a Jesus é a primeira opção que o cristão
deve fazer. Esta decisão muda tudo. É começar a viver de maneira nova a adesão
a Jesus e a pertença à Igreja. Encontrar, por fim, o caminho, a verdade,
sentido, a razão do viver diário.(…)
Dinâmica do seguimento
a Jesus
Para seguir a Jesus, o decisivo é escutar seu chamamento. Os
relatos evangélicos deixam isto muito claro. Ninguém se põe a caminho seguindo
os passos de Jesus por sua própria intuição ou por seus desejos de viver um
ideal. É Jesus quem toma sempre a iniciativa. O seguimento começa quando
alguém se sente chamado pessoalmente por Ele e acolhe o seu chamamento. Por
isso, a fé cristã não consiste primordialmente em crer em algo, mas em crer em
Alguém por quem nos sentimos atraídos e chamados: “Vem e segue-me”.
(…) O seguimento exige uma dinâmica de movimento. Seguir
Jesus significa dar passos concretos: pôr-nos a caminho, converter-nos a Jesus
Cristo, identificar-nos cada vez mais com Ele…Quem se detém ou se instala em
sua própria vida vai ficando longe de Jesus. O contrário do seguimento é o
imobilismo. (…)
Alguns traços dos
seguidores de Jesus
Nem todos seguimos Jesus da mesma maneira. Francisco de
Assis, Teresa de Ávila e Francisco Xavier, todos os três seguem a Jesus, mas o
fazem acentuando aspetos diferentes da pessoa de Jesus. Há, contudo, alguns
traços que não podem faltar em um seguidor fiel que caminha atrás de seus
passos:
Em primeiro lugar, Jesus é para seus seguidores o caminho
concreto que nos leva ao Pai. Ninguém jamais viu a Deus. O Filho Unigénito, que
está no seio do Pai e que se encarnou em Jesus, foi quem “no-lo deu a conhecer”
(Jo 1,18). Esta é a nossa fé: Deus não é uma palavra vazia, uma ideia
abstrata, uma definição admirável. Para nós, Jesus é o “Rosto humano de Deus”.
Vendo Jesus, estamos a ver o Pai(Jo 14,9). Conhecendo o Pai, vamos conhecendo
como Ele se preocupa connosco, como nos busca quando andamos perdidos, como nos
acolhe quando nos sentimos desvalidos, como nos perdoa e levanta quando nos vê
caídos, como nos anima e sustenta quando nos vê pequenos e frágeis.
Em segundo lugar, Jesus ensina aos que o seguem a serem
filhos e filhas de Deus, vivendo duas atitudes fundamentais. Primeiro, a
confiança plena. A vida inteira de Jesus transpira uma confiança total em seu
Pai. Entrega-se a Ele sem cálculos,
receios nem estratégias. Por isso tanta pena lhe causa “a pequena fé” de seus
discípulos. Segundo, essa confiança no Pai o faz viver numa atitude de
docilidade incondicional. Para Ele, o primordial é buscar e fazer a vontade do
Pai, de maneira criativa, livre e ousada. Ninguém o afastará desse caminho.
Assim viverão também seus seguidores.
Seguindo uma corrente que se vinha gestando no judaísmo,
também Jesus estabelece uma estreita
conexão entre o amor a Deus e o amor ao próximo. Os dois são inseparáveis. Não
é possível amar o Pai e desentender-se com o irmão. O que vai contra o ser
humano, vai contra Deus. Mas nas comunidades cristãs se recordava o modo
peculiar de amar, próprio de Jesus. No Evangelho de João, assim se resume a
herança: “Este é o meu mandamento: que vos ameis uns aos outros como eu vos
amei”(Jo 15,12). Por isso, os seguidores de Jesus se esforçam para amar como
Ele amou: oferecendo o perdão aos que nos ofenderam, praticando a compaixão solidária
com os mais necessitados, dando prioridade aos mais pobres e desvalidos.
Por último, não devemos esquecer que seguir a Jesus é viver a
serviço do projeto do Reino de Deus inaugurado por Ele. Os evangelhos resumem
esta missão confiada a Jesus pelos seus com diferentes linguagens [102]: hão de
sentir-se enviados por Ele como Ele é enviado pelo Pai (João); hão de ser em
toda a parte “testemunhas de Jesus” (Lucas); hão de “fazer discípulos de Jesus”
batizando e ensinando todos os povos a viver como Ele (Mateus).
Construir a Igreja de
Jesus
Nós seguidores de
Jesus anunciamos e promovemos o Reino de Deus a partir de sua Igreja. Por isso,
uma de nossas tarefas mais importantes é contribuir para fazer com todos uma
Igreja mais fiel a Jesus e a seu projeto do Reino de Deus. Mas naturalmente,
nossa primeira contribuição há de ser nossa própria conversão. Por isso não são
poucas as perguntas que podemos fazer em nossas comunidades.(…)
3.5 Escândalo e loucura
da cruz
Segundo os relatos evangélicos, os que passam diante de Jesus
crucificado no alto do Gólgota zombam dele e, rindo de sua impotência, lhe
dizem: “Se és o Filho de Deus, desce da cruz”. Jesus não responde à provocação.
Sua resposta é um silêncio carregado de mistério. Precisamente porque é Filho
de Deus, permanecerá na cruz até à morte. Esta é a fé dos seguidores de Jesus à
luz de sua trajetória humana e a partir de sua experiência de ter-se
encontrado com Ele, cheio de vida, depois de sua execução.
Os primeiros cristãos sabiam que sua fé em um Deus
crucificado só podia ser considerada como um escândalo e uma loucura. Também
nós o sabemos. Nunca religião alguma se atreveu a afirmar algo semelhante. Mas
continuamos confessando a Deus crucificado para não esquecer jamais o “amor
louco” de Deus pela humanidade. É um escândalo, e uma loucura. No entanto, para nós
que seguimos Jesus e cremos no mistério redentor que se encerra em sua morte, é
a força que sustenta nossa esperança última e nossa luta por um mundo mais
humano.
O gesto supremo de Deus
Não são poucos os cristãos que entendem a morte de Jesus na
cruz como uma espécie de “negociação” entre Deus Pai e seu Filho Jesus. Segundo
esta maneira de entender a crucifixão, o Pai, justamente ofendido pelo pecado
dos seres humanos, exige para salvá-los uma reparação que o Filho lhe oferece
entregando sua vida por nós. Se fosse assim, a imagem de Deus ficaria
radicalmente pervertida, pois Deus se apresentaria diante de nossos olhos como
um ser justiceiro, incapaz de perdoar gratuitamente: uma espécie de credor
implacável que não pode salvar-nos, se não for saldada previamente a dívida que
foi contraída com Ele. Onde ficaria a Boa Notícia de Deus proclamada por Jesus?
Com razão, o pensador francês René Girard fazia esta observação há alguns anos:
“Deus não só reclama uma nova vítima, mas reclama a vítima mais preciosa e querida:
seu próprio Filho. Inegavelmente, este postulado contribuiu mais do que
qualquer outra coisa para desacreditar o cristianismo aos olhos dos seres
humanos de boa vontade no mundo moderno”.
Tudo isto requer um profundo esclarecimento. Na fé dos primeiros
cristãos, o Pai do céu não aparece como alguém que exige previamente sangue
para satisfazer sua honra e assim possa perdoar. Ao contrário, o Pai envia seu
Filho ao mundo porque o ama, e nos oferece a salvação sendo nós ainda
pecadores. Jesus, por sua vez, nunca aparece tratando de influir no Pai o seu
sofrimento para satisfazer a sua honra ferida e assim obter uma atitude mais
benévola para com os seus filhos.
Então, quem quis a cruz e porquê? Certamente não foi o Pai,
pois Ele não quer que se cometa crime algum e menos ainda contra seu Filho
querido, mas os que condenam Jesus à morte, porque recusam o Reino de Deus que
Ele busca introduzir no mundo, abrindo caminho à justiça, à compaixão e à
solidariedade. O que o Pai quer, não é que matem seu Filho, mas que seu Filho seja fiel a seu projeto
salvador até ao fim: que continue buscando o Reino de Deus e a sua justiça para
todos, que continue encarnando seu amor a toda a humanidade até ao extremo. Por
sua vez, Jesus, o Filho amado, entrega sua vida porque se mantém fiel a esse
projeto salvador do Pai, encarnando seu amor infinito por seus filhos e
filhas.
Na cruz, Pai e Filho estão unidos num mesmo Amor, não
buscando sangue e morte, mas manifestando até que extremo insondável chega a
loucura de seu amor pelas criaturas. Na cruz, ninguém está oferecendo nada ao
Pai, para que se mostre benevolente com seus filhos. É Ele que está entregando
o que mais quer: seu próprio Filho. Jesus sofre a morte em sua carne humana; o
Pai sofre a morte de Jesus em seu coração de Pai. Paulo não duvida em afirmar
sua fé nesse gesto supremo de Deus dizendo: “Em Cristo estava Deus
reconciliando o mundo consigo e não levando em conta as transgressões dos seres
humanos” (2Cor 5,19). Assim está Deus na cruz: não acusando nossos pecados, mas
oferecendo-nos seu perdão salvador.
Um Deus crucificado
As perguntas são inevitáveis: Será que é possível crer em um
Deus crucificado pelos seres humanos? Nós nos damos conta do que estamos
dizendo? O que faz Deus numa cruz? Como pode subsistir uma religião arraigada
numa conceção tão absurda?
Um “Deus crucificado” constitui uma revolução e um escândalo
que nos obriga a questionar todas as ideias que fazemos da divindade. O
Crucificado não tem rosto nem traços que as religiões atribuem ao Ser Supremo.
O Deus crucificado não é um ser onipotente e majestoso, imutável e feliz,
alheio aos nossos sofrimentos, mas um Deus impotente e humilhado que
compartilha connosco a dor, a angústia e até a própria morte.
Diante do Crucificado, ou termina nossa fé convencional em
Deus, ou nos abrimos a uma compreensão nova e surpreendente de um Deus que,
encarnando em nosso sofrimento, nos ama de modo incrível. Começamos a intuir
que Deus sofre connosco. Nossa miséria o afeta.
(…) Despojado de todo poder dominador, de toda a beleza
estética e de toda auréola religiosa, Deus se nos revela, no mais puro e
insondável de seu mistério, como amor e só amor. Não responde ao mal com o mal.
Prefere ser vítima de suas criaturas, antes que seu verdugo. Assim é o Deus no
qual cremos nós seguidores de Jesus: um Deus frágil que não tem mais poder que
seu amor.
Um Deus identificado
com as vítimas
(…) Ele se identificava com as vítimas inocentes e com os
esquecidos pela religião do Templo. Executado sem piedade numa cruz, nele Deus
se revela agora a nós, identificado para sempre com todas as vítimas inocentes
da história. Do silêncio da cruz Ele é o juiz mais firme e manso do
aburguesamento de nossa fé, de nossa acomodação ao bem-estar e nossa
indiferença diante dos que sofrem.
Este Deus crucificado coloca em questão toda a prática
religiosa que pretenda dar culto a Deus esquecendo o drama de um mundo onde se
continua crucificando os mais fracos e indefesos. Não podemos adorar o
Crucificado e viver de costas para o sofrimento de tantos seres humanos
destruídos pela fome, pelas guerras ou pela miséria. Não nos é permitido
continuar vivendo como espectadores desse sofrimento imenso, alimentado uma
ingénua ilusão de inocência.(…)
(…)Que sentido tem levar uma cruz sobre o nosso peito, se não
sabemos carregar a mais pequena cruz das pessoas que sofrem junto a nós? (…)
Seguir a Jesus
carregando a cruz
Um seguimento sem cruz rapidamente se converte numa “religião
burguesa”, na qual se dilui a radicalidade do Evangelho e onde se põe Deus a
serviço de nosso bem-estar. O risco é grande. Já o advertiu o teólogo -mártir
Dietrich Bonhoeffer, comentado a reação de Pedro, que queria afastar Jesus de
seu caminho para a cruz: “Isto prova que, desde o princípio, a Igreja se
escandalizou com Cristo sofredor. Não quer que seu Senhor lhe imponha a lei do
sofrimento”. (…)
Segundo os relatos evangélicos, Jesus chama seus discípulos a
segui-lo pondo-se a serviço incondicional do Reino de Deus. A cruz é apenas o
sofrimento com o qual se encontrarão como consequência desse seguimento: o
destino doloroso que inevitavelmente
terão de compartilhar com Ele se seguem realmente os seu passos.
(…) Quem segue Jesus não busca “cruzes”, mas aceita a
crucifixão que lhe vem por viver seguindo os passos de Jesus. Aceita viver
crucificado com Cristo. Sua cruz o acompanha ao longo de sua vida. No trabalho
do reino, é tão importante o “fazer” como o “padecer”. Temos de “fazer” um
mundo mais justo e humano, uma igreja mais fiel a Jesus e mais coerente com o
Evangelho. E temos que “padecer” por um mundo mais digno e por uma Igreja mais
evangélica (…)
3.6 Cristo
ressuscitado, mistério de esperança
(…) Ressuscitando Jesus, o Pai confirmou sua vida e sua
mensagem do Reino de Deus e toda a sua atuação. O que Jesus anunciou na
Galileia sobre a compaixão e misericórdia do Pai é verdade: Deus é como sugere
Jesus em suas parábolas. A maneira de ser de Jesus e a sua atuação profética
coincidem com a vontade do Pai. A solidariedade de Jesus com os que sofrem, sua
defesa dos pobres, seu perdão aos pecadores: é isso que Deus quer. Jesus tem
razão quando busca uma vida mais digna e feliz para todos, a começar pelos
últimos. Esse é o maior anseio que Deus guarda em seu coração. Esse é o caminho
que conduz à vida.
(…)Cristo, ressuscitado pelo Pai, é nossa esperança. Nele
descobrimos a intenção profunda de Deus confirmada para sempre: uma vida plena
para a criação inteira, uma vida libertada para
sempre do mal e da morte, o Reino de Deus feito realidade. Nós estamos
ainda a caminho. Tudo continua mesclado e confuso: justiça e injustiça, morte e
vida, luz e trevas. Tudo está inacabado, a meias e em processo. Mas a força
secreta do Ressuscitado está atraindo tudo para a Vida definitiva. (…)
Recuperar a experiência
viva do Ressuscitado
Quando os primeiros os primeiros cristãos falam do
Ressuscitado, não o fazem só para confessar sua fé naquele acontecimento singular e irrepetível
pelo Deus “ressuscitou de entre os mortos” a Jesus para introduzi-lo na
plenitude de sua própria vida, mas, sobretudo, para viver agora sua fé em
Cristo “ressuscitando para uma vida nova”. Segundo Paulo de Tarso esta
experiência consiste em “conhecer a Cristo e o poder de sua ressurreição”(Fl
3,10). Ele vive com tal intensidade esta experiência que chega a dizer: “Já não
sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim” (Gl 2,20). Os discípulos, que
seguiram a Jesus pelos caminhos da Galileia, hão de aprender agora a viver do
Espírito do Ressuscitado, que dá a vida(1Cor 15,45).
Quando se enfraquece nos cristãos esta experiência do
Ressuscitado, a Igreja corre o risco de ficar sem força vivificadora. Sem o
Espírito do Ressuscitado a liberdade se asfixia, a comunhão facilmente se
rompe, os carismas se extinguem, o povo e a hierarquia se distanciam. Sem o
Espírito do Ressuscitado opera-se um divórcio entre teologia e espiritualidade,
entre doutrina e prática evangélica. Sem o Espírito, a esperança é substituída
pelo temor, a audácia pela covardia e a vida cai na mediocridade.
(…)Temos que reavivar nossa fé recuperando a experiência viva
do Ressuscitado. De mameira oculta, mas
real.
(…)Ele está connosco “todos os dias até o fim do mundo” (Mt
28,20). Está em nossas lágrimas e penas como consolo permanente e misterioso.
Está em nossos fracassos e impotência como força segura que sustenta. Está em
nossas depressões acompanhando-nos em nossa solidão e tristeza. Está em nossos
pecados como misericórdia que nos suporta com paciência infinita e nos
compreende, perdoa e acolhe para sempre. Está inclusive em nossa morte como
sopro de vida eterna que triunfa quando parece que está tudo perdido. Nenhum
ser humano está só. Ninguém vive esquecido. Nenhuma queixa cai no vazio. O
Ressuscitado nos acompanha.
O novo rosto de Deus
Os discípulos já não são mais os mesmos. O encontro com Jesus,
cheio de vida, depois de sua execução, transformou-os totalmente. Eles
começaram a ver tudo de maneira nova. Deus era o ressuscitador de Jesus.
Tiraram de imediato as consequências.
Deus é amigo da vida. Agora não havia mais nenhuma dúvida. O
que Jesus havia dito era verdade: “ Deus não é um Deus de mortos, mas de
vivos”. Os seres humanos poderão desatribuir a vida de mil maneiras, mas, se
Deus ressuscitou Jesus, isto significa que Ele só quer vida para seus filhos.
Não estamos sós nem perdidos diante da morte. Podemos contar com um Pai que,
acima de tudo, inclusive acima da morte, quer nos ver cheios de vida. Daí em
diante só há uma maneira cristã de viver que assim se resume: introduzir vida
onde outros introduzem morte.(…)
Entrar numa dinâmica de
ressurreição
Onde e como viver a fé na ressurreição de Jesus, sem
reduzi-la a uma afirmação teórica e
inoperante? Como vivenciar o poder de sua
ressurreição? Como viver a fé a partir de uma dinâmica de ressurreição?
O primordial é, sem dúvida, morrer ao pecado que nos
desumaniza, e ressuscitar para a vida nova, mais arraigada em Cristo. Não só
isso. Acolher também o Espírito do Ressuscitado para ressuscitar tudo que há de
bom em nós, e que, talvez, esteja morto. Reavivar nossa fé apagada, nossa
esperança lânguida e, sobretudo, nosso amor medíocre: “ Não sabemos que
passamos da morte à vida, porque amamos os irmãos. Quem não ama, permanece na
morte” (1Jo 3,14).
Assim, a ressurreição de Cristo nos introduz numa dinâmica de crescimento.
Assim são exortadas as primeiras comunidades cristãs: “vivendo segundo a
verdade e no amor, cresceremos em tudo,
achegando-nos àquele que é a Cabeça de Cristo” (Ef 4,15). Não se fala
somente do crescimento individual de cada fiel, mas do crescimento de toda a
Igreja, “realizando o crescimento do Corpo para sua edificação no amor”(Ef
4,16). Não se trata de crescer em número, em poder ou em prestígio, mas de
“revestir-nos do Homem Novo”, que é Cristo Senhor.
A dinâmica de ressurreição é sempre luta pela vida. O Deus
que se revela na ressurreição de Jesus é alguém que introduz vida onde nós
introduzimos morte. Um Pai “apaixonado pela vida” que está nos exortando a
estar presentes onde se causa morte, para defender a vida e lutar contra aquilo
que destrói ou desumaniza (mortes violentas, fome, marginalização, aborto,
solidão…)
O Horizonte da nossa
esperança
Arraigados em Jesus, ressuscitado por Deus para sempre,
intuímos, desejamos e cremos que o Bom Pai está conduzindo para sua verdadeira
plenitude o anseio de vida, de justiça e de paz que se encerra no coração da
humanidade e na criação inteira. Um dia conheceremos uma vida na qual já não
haverá mais pobreza nem dor; ninguém estará triste, ninguém terá que chorar. Por
fim, poderemos presenciar os que vêm em barcos
chegar à sua verdadeira pátria.
Apoiados em Jesus
ressuscitado, nós rebelamos com todas as nossas forças contra o facto de que
essa imensa maioria de homens, mulheres e crianças, que só conheceram miséria,
fome, humilhação e lágrimas nesta vida, fique esquecida para sempre. Também nos
rebelamos contra o facto de que tantas pessoas sem saúde, enfermos crónicos,
incapacitados físicos e psíquicos, pessoas mergulhadas na depressão, cansadas
de viver e de lutar, não conheçam jamais o que é viver em paz e saúde. Um dia todos e
cada um hão de escutar as palavras do Pai, amigo da vida: “ Entra no gozo de
teu Senhor”.
A partir da nossa fé no Ressuscitado cremos que nossos
esforços por um mundo mais humano e feliz não se perderão no vazio. Tudo o que
aqui ficou pela metade, o que não pôde ser,
o que deturpamos com nossa inércia ou o nosso pecado, tudo alcançará em
Deus sua plenitude. Não nos resignamos que Deus seja para sempre um “ Deus
oculto” cujo olhar não podemos conhecer, nem sua ternura e seu abraço. Vamos encontra-Lo
gloriosamente com Jesus.
Fundamentados em Jesus ressuscitado, cremos que as horas alegres
e as experiências amargas, as “pegadas” que deixamos nas pessoas e nas coisas,
o que aqui construímos com alegria e/ou com lágrimas, tudo ficará transfigurado.
Já não conheceremos a amizade que termina, a festa que acaba, a despedida que
entristece, nem o amor que se apaga. Deus será tudo em todos. Um dia
escutaremos dos lábios de Deus estas palavras incríveis: “ Eu sou a origem e o
final de tudo. Ao que tenha sede eu lhe darei de graça do manancial da água da
vida”(Ap 21,6). De graça, sem merecê-lo, assim saciará Deus a sede que existe
dentro de nós. (…)
Contracapa
(….)
A geografia do corpo humano, relacionada com a fé, mostra-se
rica em lugares. Pés que andam ou desandam veredas, mãos que agarram ou soltam,
ouvidos que escutam ou estão fechados…Mas, provavelmente, não haja outro lugar
que tenha um papel tão peculiar como os olhos. Antes do contacto físico - e
contando também que possam existir olhos cegos -, eles são vigias encarregados
de vislumbrar, quando ainda estão longe, tanto as presenças desejadas como as
indesejáveis. Por isso os olhos podem certamente ser considerados como uma
autêntica porta da fé, como acontece com o discípulo amado quando descobre a
presença do Senhor ressuscitado à margem do lago da Galileia (Jo 21)
Dolores Aleixandre
Parra, RSCJ, foi
professora de Sagrada Escritura na Universidad Pontificia Comilhas (Madrid).
Colabora habitualmente nas revistas Sal Terrae, Alandar e Vida Nueva. É autora
de mais de uma dúzia de livros.
Juan Martín Velasco é professor-emérito da Universidad
Pontificia de Salamanca. Foi diretor do Instituto Superior de Pastoral (Madrid)
durante dezasseis anos e reitor do Seminário Conciliar de Madrid de 1977 a
1987. Autor de numerosas obras e artigos sobre filosofia e fenomenologia da
religião.
José António Pagola foi vigário episcopal da Diocese de
San Sebastián por mais de vinte anos e diretor do Instituto de Teologia e
Pastoral dessa cidade. Desenvolve uma intensa atividade com grupos de crentes
e afastados. Dele, a Vozes traduziu: Jesus – aproximação histórica (2010); Pai-nosso:
orar com o espírito de Jesus(2012) e comentários aos evangelhos de Lucas,
Marcos, João e Mateus.”
“ Extratos retirados
do livro ‘Olhos fixos em Jesus’, dos autores, Dolores
Aleixandre Parra, Juan Martín Velasco e José António Pagola, EDITORA VOZES, Petrópolis-Brasil”
“Uma tradução Brasileira de um Livro fantástico! Este Livro está disponível nas
livrarias Portuguesas em formato e-book”, podendo ser adquirido e lido na íntegra. "
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