“Acima
d’Ele havia um letreiro: ‘Este é o Rei dos judeus’” (Lc 23,38)
« Pode nos causar espanto o fato da liturgia escolher, para a festa
de Cristo Rei, a cena da morte de Jesus na Cruz. Para Lucas, o Reino de Jesus é
essencialmente o Reino da reconciliação do ser humano com Deus. Em outras
palavras, a reconciliação tem como centro a Cruz, ato supremo de amor e
expressão visível da Misericórdia de Deus. Podemos, então, afirmar que a “A
CRUZ é o lugar por excelência da revelação visível da Misericórdia de
Deus”.
No mistério da Paixão do Filho se manifestou radicalmente a Misericórdia
do Pai. Na Paixão encontramos a Misericórdia de um Deus que desceu e chegou até
o extremo da fragilidade para manifestar a força reconstrutora de seu Amor. Se
Deus “sofre”, é por seu excesso de Amor, desde o princípio.
A Cruz de Jesus expressa de maneira penetrante o Amor
Misericordioso do Pai. Ela é revelação do Amor levado até às últimas
consequências. Ela nos fala daquilo que Deus sente por nós. “Deus é capaz
de sofrer porque é capaz de amar. Sua essência é a MISERICÓRDIA” (Moltmann). A
Misericórdia torna o próprio Deus vulnerável e passível de um sofrimento livre,
ativo, fecundo. Se Deus fosse impassível (incapaz de sofrer) seria também
incapaz de amar.
De fato, o mistério do “amor em excesso” de Deus, revelado no
silêncio junto ao sofrimento inocente, chama-se misericórdia compassiva. Só o
amor é capaz desse sofrimento compassivo. Porque é Amor puro, Deus usa de
paciência, de presença silenciosa, de misericórdia ativa e, assim, salva de
forma compassiva toda criatura em seu seio regenerador. Só Ele é capaz de
assumir para si o sofrimento e a fragilidade humana, abrindo um novo horizonte
de vida.
No N.T., o mistério da Misericórdia do Pai atravessa toda a
experiência de Jesus, de sua missão, mas também de sua própria paixão e de sua
Páscoa. No sofrimento e morte do Filho há a dor de dilaceração, fragilidade e
silêncio do Deus Pai/Mãe, como em dores de parto por uma criação que ainda
precisa da compaixão e da misericórdia maternal do Criador. Se o Criador sofre
em dores de parto por sua criação, nosso sofrimento está em suas mãos, em seu
seio. É a maternidade divina regeneradora de sofrimentos.
Sem a Cruz seria muito difícil convencer o ser humano do amor
misericordioso de Deus, e mais ainda de seu apaixonado interesse por nos
salvar. Mas, a partir dela, será sempre possível dizer ao ser humano que a Cruz
de Jesus tem um sentido, e que a última palavra é “salvação”.
No Jesus crucificado se encontram e se reconhecem todos os
sofredores inocentes e crucificados da história; n’Ele se condensam todos os
gritos da humanidade sofrida e excluída. A “kénosis” de Jesus nos ensina,
portanto, a encontrar Deus nos lugares onde a vida se acha bloqueada.
Deus “desceu” às zonas mais
escuras da humanidade – sofrimentos, fracassos, amarguras, pecados... – para sentir como Seu
nosso sofrimento e ali falar ao nosso coração. No silêncio, Deus não apenas se
solidariza, mas sofre “em sua pele”, identificado com os sofredores, aqueles
que sobram...
A primeira coisa que descobrimos ao contemplar o Crucificado do
Gólgota, torturado injustamente até à morte pelo poder político-religioso, é a
força destruidora do mal, a crueldade do ódio e o fanatismo da mentira.
Precisamente aí, nessa vítima inocente, nós seguidores de Jesus, vemos o Deus
identificado com todas as vítimas de todos os tempos. Está na Cruz do Calvário
e está em todas as cruzes onde sofrem e morrem os mais inocentes.
Jesus foi condenado como herege e subversivo, por elevar a voz
contra os abusos do templo e do palácio, por colocar-se do lado dos perdedores,
por ser amigo dos últimos, de todos os caídos. “Jesus morreu de vida”: de
bondade e de esperança lúcida, de solidariedade alegre, de compaixão ousada, de
liberdade arriscada, de proximidade curadora... “Morreu de vida”: isso foi a
Cruz, e isso é a Páscoa. E é por isso que tem sentido recordar Jesus, olhando
as chagas de seu corpo e as pegadas de sua vida.
O Crucificado nos revela que não existe, nem existirá nunca um
Deus frio, insensível e indiferente, mas um Deus que padece connosco, sofre
nossos sofrimentos e morre nossa morte. A partir da Cruz, Deus não responde o
mal com o mal; Ele não é o Deus justiceiro, ressentido e vingativo, pois
prefere ser vítima de suas criaturas antes que verdugo. Despojado de todo poder
dominador, de toda beleza estética, de todo êxito político e de toda auréola
religiosa, Deus se revela a nós, no mais puro e insondável de seu mistério,
como amor misericordioso.
Nós cristãos contemplamos o Crucificado para não esquecer nunca o
“amor louco” de Deus para com a humanidade e para manter sempre viva a memória
de todos os crucificados da história. Mais uma vez, no alto da Cruz, a
Misericórdia visível em Jesus revela-se expansiva, envolvente e salvífica.
Lucas, no evangelho de hoje, destaca diferentes reações das
diferentes pessoas que estavam junto à Cruz. Elas representam toda a humanidade
frente à Misericórdia solidária de Jesus. Por um lado, estão aquelas pessoas
que não viram no rosto de Jesus o olhar misericordioso do Pai; parece não terem
entendido a proposta de vida de Jesus. Por isso zombam, desprezam, pedem
sinais...
Mas, por outro lado, do meio das zombarias e escárnios, alguém,
tocado pelo silêncio e inocência de Jesus, deixa escapar uma surpreendente
súplica: “Jesus, lembra-te de mim, quando entrares no teu reinado”. Não se trata
de um discípulo nem um seguidor de Jesus, mas um dos ladrões crucificados junto
a Ele. Ele só pede que Jesus não se esqueça dele. E Jesus responde prontamente:
“Ainda hoje estarás comigo no paraíso”. Revela-se impactante que, dos lábios de
homem derrotado e moribundo, brote uma palavra de vida, acompanhada de uma
certeza que a torna eterna, em um presente sempre atual: “hoje”.
Esta cena nos indica até onde pode chegar a Misericórdia: do meio
da morte ela se revela, mais uma vez, geradora de vida, e vida eterna. Agora,
na Cruz, estão os dois unidos no suplício e na impotência, mas Jesus, com sua
presença misericordiosa, o acolhe como companheiro inseparável. Morrerão
crucificados, mas entrarão juntos no mistério de Deus.
Estamos encerrando o “Jubileu extraordinário da Misericórdia”; e a
vivência da Misericórdia é que impulsiona a Igreja para fora de si mesma,
para as margens, onde acontece o sofrimento humano. Uma Igreja configurada pelo
“Princípio Misericórdia” tem força e coragem para denunciar os geradores de
sofrimento e morte, para desmascarar a mentira daqueles que oprimem, para
animar e despertar a esperança daqueles que são as vítimas.
Quando isso ocorre, a Igreja é ameaçada, atacada e perseguida; mas
isso mostra que ela se deixou conduzir pelo “Princípio Misericórdia”. A
ausência de tais ameaças, ataques e perseguições significam, por sua vez, que a
Igreja não está sendo fiel a esta misericórdia reconstrutora que se fez visível
na Paixão e Cruz de Jesus Cristo. Se ela leva a sério a misericórdia, se a
deixa transparecer no seu modo de se fazer presente no mundo, então ela se
torna conflitiva.
Diante do supremo indicador do amor misericordioso de Jesus e do
amor do Pai, abre-se para a Igreja uma inesgotável inspiração e uma referência
única para ser, também ela, presença misericordiosa.
Texto bíblico: Lc 23,35-43
Na oração: recordar momentos
significativos vividos neste Jubileu de Misericórdia que ora se encerra.
Mas a Misericórdia não se restringe a um jubileu, não é um evento;
ela é habito de vida, pois é a marca distintiva de todo seguidor de Jesus:
“Sede misericordiosos como o Pai”.
- Como deixar transparecer a Misericórdia do Deus Pai/Mãe no
cotidiano de sua vida?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Itaici-SP »
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