«Entrevista a Andrea Riccardi, fundador da Comunidade de
Santo Egídio
Há 46
anos, Andrea Riccardi, na altura um jovem estudante, decidiu, juntamente com
alguns amigos, levar o Evangelho à prática e desenvolver acções concretas a
favor dos mais desfavorecidos. O que o levou a tomar esta iniciativa?
A Comunidade de
Santo Egídio nasceu em 1968, entre estudantes de um liceu romano. O ano de 1968
foi um ano particular. No mundo juvenil respirava-se um ar de mudança,
entrevia-se a possibilidade de mudar o mundo e, junto a isto, havia um outro
ambiente que se respirava, o do Concílio do Vaticano II, do renovamento em curso
na Igreja Católica. Neste clima nasceu a Comunidade. Mas o incentivo à mudança
poderia ter sucesso apenas se partisse da mudança pessoal. Com simplicidade,
mas com convicção, pensava: se mudamos o homem, podemos mudar o mundo. Apenas
homens novos poderão criar um mundo novo. Por isso, confiámo-nos à Palavra de
Deus e começamos a segui-La, tentando pô-La em prática, frequentando o mundo da
periferia de Roma, entre os pobres.
Assim, os pobres foram, desde o início, os nossos companheiros, os nossos
amigos, parte da nossa família.
Foram sempre bem aceites pela sociedade e
pela Igreja?
O encontro com os
pobres e o desejo de comunicar o Evangelho fez-nos sempre viver uma dimensão
ampla, uma visão alargada, aberta ao mundo. Encontrar os outros, falar,
dialogar, a amizade são traços decisivos do nosso modo de ser. Em Maio de 1986,
o Pontifício Conselho dos Leigos reconheceu a Comunidade de Santo Egídio como
uma «Associação Pública de Leigos». Um reconhecimento que deu carácter oficial
a uma presença de já quase 20 anos dentro da Igreja.
Nos anos 70 e 80, a Comunidade expandiu-se
consideravelmente. Primeiro para outras cidades italianas, depois um pouco por
todo o mundo. O que determinou o crescimento e a internacionalização de um
pequeno projecto que nasceu num bairro italiano e hoje tem 50 mil leigos em
mais de 70 países?
No início da nossa história não
pensávamos em criar comunidades fora de Roma: a nossa escolha era edificar a
Comunidade na Igreja local de Roma. Diria que foram a vontade de anunciar o
Evangelho e a amizade com os pobres que nos levaram a olhar para além da nossa
cidade, para Itália e para o mundo. As nossas Comunidades fora de Roma nasceram
sempre de um encontro pessoal com alguém que queria viver no espírito de nossa
Comunidade, a centralidade do Evangelho e o serviço aos pobres. Assim, com o
passar dos anos, nasceram comunidades fora de Roma, primeiro em Itália e depois
em todo o mundo. Hoje, estamos presentes em mais de 70 países, em todos os
continentes. Formamos assim uma fraternidade de Comunidades que em Roma tem o
seu ponto de unidade. Sejam grandes ou pequenas, todas as nossas Comunidades
rezam e servem os pobres, sentindo-se parte de uma família sem fronteiras.
Para além do serviço aos mais desfavorecidos
(pobres, doentes, imigrantes, presidiários, etc.), uma das principais vertentes
da Comunidade é a defesa da paz e dignidade humana e a promoção do diálogo
inter-religioso. Que projectos têm sido desenvolvidos neste âmbito? Em que
países?
A escuta do
Evangelho e encontro com os homens fizeram amadurecer em nós a vocação para o
diálogo, para a paz. O trabalho pela paz e o diálogo é certamente uma
componente essencial do espírito de Santo Egídio. Graças à mediação da
Comunidade, a 4 de Outubro de 1992, é assinado em Roma o acordo de paz entre o
governo moçambicano e a guerrilha, que punha fim a uma guerra que durou 16
anos, com um milhão e meio de mortos. Às vezes, perguntam-nos, como então fez a
jornalista do Washington Post: «Quando é que deixastes a assistência aos pobres
e vos lançastes na diplomacia?». Mas o trabalho pela paz não é diferente do
trabalho pelos pobres, pelo contrário, nasce precisamente do empenho pelos
pobres porque a guerra é mãe de todas as pobrezas. O nosso trabalho pela paz
não criou um Santo Egídio «diplomático», o trabalho pela paz começou ajudando
os pobres em Moçambique onde tudo estava bloqueado pela guerra. O caso de
Moçambique fez-nos intuir que os cristãos têm uma grande força de paz. Pode
dizer-se que, depois de 1989, todos podem fazer a guerra, qualquer grupo,
etnia, máfia pode pegar nas armas e fazer guerra. Mas também é verdade que
todos podem fazer mais pela paz e trabalhar mais pela paz. A nossa experiência
fez-nos descobrir que tínhamos recursos de paz.
De que forma as diferentes religiões podem
dar um contributo para a paz?
O tema da paz hoje é central e sê-lo-á cada vez mais na vida
das comunidades cristãs e dos crentes de todas as religiões. A guerra voltou ao
território europeu, entre a Rússia e a Ucrânia. A Síria é afectada por uma
guerra dilacerante e desumana. O Papa Francisco falou dos conflitos
contemporâneos quase como uma terceira guerra mundial, mas aos bocados ou por
capítulos. Neste cenário é lícito perguntar-se: a paz representa o nosso
futuro? O que podemos fazer pela paz? Acreditamos que as religiões podem
trabalhar pela paz e pela convivência. O diálogo entre as religiões é uma resposta adequada para viver juntos em
regiões e cidades, cada vez mais complexas, etnicamente e religiosamente. É uma
prática quotidiana, que se torna proposta e cultura. É o caminho do «Espírito
de Assis», do primeiro grande encontro entre as religiões, convocado em 1986,
na cidade de S. Francisco, por João Paulo II, ainda no tempo da Guerra Fria. A
Comunidade de Santo Egídio continuou este caminho desde 1986, ano após ano,
reunindo pessoas das várias religiões, e pessoas sem religião, para trabalhar
nesta delicada fronteira, espiritual, mas concreta.
Como lida com uma guerra alicerçada em fundamentalismos
religiosos?
As religiões, por
vezes, são atraídas pelo culto da violência, capazes de solicitar um fanatismo
simplificador e desumano. Diante disto, não só as religiões devem resistir, mas
devem voltar à sua profunda força de paz. A força do «Espírito de Assis» está
em confirmar que não existe guerra e violência em nome de Deus: dizemo-lo
dentro das próprias tradições religiosas, advertindo que a violência em nome de
Deus é uma blasfémia.
O nome Comunidade de Santo Egídio, mesmo
fazendo referência a uma localidade italiana, funciona como marca fora de
portas?
O Papa Francisco,
visitando a nossa comunidade em Junho passado, disse-nos que Oração, Pobres e
Paz são os traços fundamentais da vocação da Comunidade. É uma bela definição
daquilo que somos e queremos ser. Mas não é um traço apenas romano ou italiano,
é um traço universal.»
«Entrevista retirada da revista “Mensageiro do Coração de Jesus” –
Secretariado Nacional do Apostolado da Oração- de Janeiro de 2015, pags.4,5 e 6.»